No Traçando Livros de hoje, Kafka e Cortázar


Creio em Franz Kafka e em Julio Cortázar como se fossem deuses. Já escrevi em algum lugar que a religião é minha literatura. Sou um ateu que crê. Meu panteão tem duas divindades, portanto. Ambos os sobrenomes começam com o mesmo fonema. Som de cacos retirados do vidro quebrado do espelho em que os vejo. Peço perdão pelo tom da minha escrita, que é realmente de veneração.

Kafka é um percursor de Cortázar, em que pese este não ter mencionado muito o outro em sua obra. Em “O jogo da amarelinha”, ele é citado uma vez numa das notas de Morelli. Em ensaio sobre Edgar Allan Poe, de quem foi tradutor, diz que Kafka é um dos mestres em criar ambientes. No ensaio “Aspectos sobre o conto”, por seu turno, Cortázar escreveu: “Basta perguntar por que determinado conto é ruim. Não é ruim pelo tema, porque em literatura não há temas bons nem temas ruins, há somente um tratamento bom ou ruim do tema. Também não é ruim porque os personagens careçam de interesse, já que até uma pedra é interessante quando dela se ocupam um Henry James ou um Franz Kafka.” (Em “Valise de cronópio”, tradução de Davi Arrigucci Jr.) No entanto, não citou nenhum conto do escritor checo entre os seus favoritos.

Há nas histórias de ambos uma aura de mistério, estranhamento, absurdo. É o que os liga. Um tema sobre o qual se debruçaram foi o da metamorfose. A novela mais famosa de Kafka traz seu protagonista, Gregor Samsa, transformado num imenso inseto. Barata, dizem alguns. Percevejo, dizem outros. Um besouro, talvez. No conto “Axolotle”, Cortázar apresenta-nos uma personagem que se transforma numa espécie de salamandra que observava num aquário. Nenhuns dos personagens se surpreendem muito com as metamorfoses. É o que Cortázar chama de sentimento do fantástico.

Os “sonhos intranquilos” ou aqueles momentos da madrugada em que estamos no semissono, semiacordados, em que as fronteiras entre o real e o sonho se confundem, também aparecem na escrita desses deuses da palavra. O escritor argentino, no conto “A noite de barriga para cima”, relata a história de um motoqueiro que sofre um acidente e, na cama do hospital, sonha que está em uma época pré-colombiana sendo perseguido por índios de outra tribo. Acorda, depois dorme e sonha de novo, e assim várias vezes, até que... Mais do que isso não conto, para não estragar a surpresa de quem irá ler.

O autor checo, por sua vez, relata vários sonhos em seus diários, como neste trecho: “Durmo sem esforço, mas, ao cabo de uma hora, desperto com a sensação de ter enfiado a cabeça num buraco medonho. Vejo-me, então, completamente acordado, como se não tivesse dormido nada ou apenas tivesse tirado uma ligeira pestana.” (Tradução de Geir Campos.) Já um dos seus principais romances pode ser a narração de um grande sonho. É dessa forma que interpreto “O processo”. Joseph K. acorda e dois homens o esperam para dizer que ele está sendo julgado e, por isso, será preso. A partir daí, há uma torrente de situações estranhas, absurdas, descrições de salas com entradas em locais insólitos, tetos baixos, uma atmosfera asfixiante, enfim. Joseph K., acredito, não acorda e, assim como Gregor Samsa talvez, vive um grande pesadelo.

A ponte é uma metáfora presente na obra dos dois. Kafka tem um conto em que o narrador diz ser uma ponte sobre um abismo. De repente, aparece a figura de um homem que pula nas suas costas. O narrador se vira (se revolta?) e acaba caindo no riacho no fundo do abismo. Em “O veredicto”, Georg Bendemann atira-se da ponte sobre o rio da cidade de Praga, depois de ser “condenado” pelo pai. Cortázar, por sua vez, em “O jogo da amarelinha” faz com que Maga e Oliveira se encontrem em uma ponte sobre o rio Sena, em Paris. É numa ponte em Budapeste que, no conto “Distante”, Aline Reyes encontra outra Alina, o seu duplo. As pontes simbolizam a tentativa de se unir a algo, ligação, passagem.

Construo essa ponte entre dois grandes nomes da literatura universal porque os admiro. Mais ainda, eles me incomodam. Lê-los é passar pontes e chegar ao outro lado. Eles me ligam a algo, que não sei o que é. Sei que não é terra firme. É isso o que faz a boa literatura. Ela deve nos inquietar e não confortar. Como escreveu Kafka em uma carta ao amigo Oskar Pollak: “Apenas deveríamos ler os livros que nos picam e que nos mordem. Se o livro que lemos não nos desperta como um murro no crânio, para que lê-lo?”

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