Minha homenagem ao Cony no Caderno de Sábado do Correio do Povo


Uma quase-homenagem


Neste quase-país em que vivemos, terra de quase-leitores, em que quase-escritores tentam escrever seus quase-livros, um escritor, sem o quase, publicou, na sua quase-humildade, o que chamou de quase-romance e pôs o título de Quase memória, isso décadas depois de ter declarado abandonar a literatura (ou seja, quase deixou de escrever). Foi essa obra que me fez conhecê-lo, lá pelos anos 90, quando começava a me interessar cada mais pela arte literária. Neste 2018, prenunciando o que promete ser um dos piores anos de nossa história, ele nos deixa.

A morte, diga-se, é uma constante em sua obra, bem como nas frases espirituosas com as quais ele nos presenteava em entrevistas e nas suas participações como comentarista no rádio. Conviveu com a espera por ela nos últimos anos em que a saúde o debilitava. Era favorável ao suicídio assistido, como declarou em entrevista ao site da BBC Brasil: “Ninguém quer morrer sofrendo, chorando e gritando. Eu, pelo menos, não. Quero morrer numa boa (...). Há casos em que os remédios já não produzem mais efeito, a família gasta um dinheiro que não tem e, pior, o paciente não tem mais condições de viver, só de sofrer. Se não há uma solução médica ou científica, o suicídio assistido é a saída mais humana que existe". Em entrevista para a Folha, concedida ao jornalista Álvaro Costa e Silva, disse: "Jamais comemorei meu aniversário. E, nas poucas vezes em que cantei parabéns, nunca disse o último verso: 'Muitos anos de vida'. Não desejo isso para ninguém". Também disse que "a vida não é mortal, a morte é que é vital".

Ele viveu, porém, 91 anos. Para a nossa sorte, ainda escrevendo e publicando. Durante certo tempo, porém, esteve no seminário, e por isso quase perdemos um escritor para a Igreja. Essa saga vem retratada em Informação ao crucificado, de 1961. Romance em forma de diário, traz a história de João Falcão, seminarista (que seria o próprio Cony) que acaba questionando sua fé. As últimas palavras do livro são emblemáticas: “E eis que vos dou a informação: Deus acabou”. No seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, no entanto, afirmou: “Continuo agnóstico, mas devoto dos meus santos tutelares. Considero-me em processo, doloroso mas sincero, de retorno à fé naquele Deus que o rei e profeta Davi dizia ter alegrado a sua juventude.”

Quanto à política, sempre esteve envolvido nas discussões nacionais, inclusive escreveu crônicas sobre o golpe de 1964, reunidas em O ato e o fato, sendo um dos primeiros escritores a se pronunciar sobre a ditadura que iniciava. Em outro trecho do seu discurso de posse na ABL, escreveu: “Não tenho disciplina mental para ser de esquerda, nem firmeza monolítica para ser de direita. Tampouco me sinto confortável na imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do centro.” Mesmo assim, no entanto, diversas declarações na internet, de gente de esquerda e de direita, afirmavam que não devíamos lamentar a sua morte já que ele pertenceria ao outro lado. Que lado, cara pálida?

Independentemente dos seus posicionamentos (e ele era, como podemos ver, um escritor que se posicionava, mesmo que fosse para observar tudo de cima do muro, com uma visão privilegiada), é uma morte a se lamentar sim, até porque temos poucos intelectuais que dizem o que pensam sem estar sob as botas de X ou Y. Quanto à literatura, não vejo herdeiros. Seu estilo era único, assim como a abordagem dos temas.

Certa vez, Cony disse que “biquínis e mensagens devem ser curtos para aguçar o interesse e longos o suficiente para cobrir o objeto”. Portanto, encerro por aqui, deixando curta esta homenagem, em que não se revelam detalhes dos enredos dos livros para provocar a curiosidade do leitor: ao ler a obra do Cony, a homenagem estará completa.

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