Minha resenha no Caderno de Sábado do Correio do Povo
Criar é transgredir
O artista é um transgressor por excelência, mesmo se não
está transgredindo. O simples fato de não fazer nada pode ser uma transgressão.
Se esperam algo dele e ele não o faz, está transgredindo. Penso nisso quando
vejo uma patrulha que espera uma posição do artista em meio a questões
políticas e ele se furta a participar, opinar. “Alienado!”, gritam os
inquisidores das redes sociais. Ou “fascista!”, “comunista!”, “coxinha!”,
“mortadela!”, se o seu silêncio for interpretado como adesão a um lado da
peleia ou se ele muda de posição.
Paulo Ribeiro é
um transgressor em vários sentidos. Sua obra é prova disso, bem como suas
posições ideológicas declaradas. Recentemente, rompeu com o PT, do qual era
filiado, em meio às reiteradas denúncias de corrupção. Decepcionou-se
justamente porque não viu mais na sigla a transgressão que a firmava como o
partido dos transgressores, muito menos dos trabalhadores. Os petistas traíram
os transgressores (e os trabalhadores) ao se adaptar ao sistema a que tanto
combatiam.
Paulo Ribeiro também é um transgressor porque, enquanto os
profissionais de ensino buscam uma posição que os valorize financeiramente,
resolveu deixar de lecionar na Universidade de Caxias do Sul para se dedicar à
literatura. Quer maior exemplo de transgressão?
Transgressores também são os personagens de seu mais recente
livro, um conjunto de contos longos intitulado, claro, O transgressor (Kotter/Ateliê
Editorial), em que pese nenhuma das narrativas ter esse título. Todas têm,
entretanto, algum modo de transgredir.
O primeiro conto é “Cacambo”. Quando o protagonista,
Ricardo, era estudante, a professora o considerava parecido com o empregado de
Cândido, da novela de Voltaire, e o apelido pegou entre os colegas. Cada
capítulo dessa narrativa é denominado “Planilha”, com os subtítulos “lançamento
e saldo”, referências ao trabalho de Ricardo como datilógrafo em um escritório.
Mas também se refere ao Caixa 2 das propinas delatadas na Operação Lava-Jato,
na qual seu chefe está envolvido. É o conto que mais bate na questão da
corrupção e na curva em declive praticada pela esquerda nos último anos. Seu
chefe, diga-se, também se chama Cândido e acha que vivemos no melhor dos mundos
possíveis (para ele, claro): “— Tudo está bem. O Brasil é um Eldorado”, diz ao
empregado. A transgressão do personagens, está, entre outras coisas,
relacionada ao fato de ele vencer várias dificuldades, apesar de ser ingênuo e
ser “filho de uma mãe solteira, analfabeta, lavadeira de pratos em hotel” e que
também se prostituía.
Em “Lazarus”, temos a figura do artista atormentando, mais
precisamente um pintor. Leitor de Schopenhauer, reflete sobre a idealização do
objeto artístico: “A pura contemplação. Eu não quero, eu, homem-pintor, cobiçar
a passista da Mangueira, suas coxas rijas, malhadas, sua bunda proeminente a me
idiotizar. Eu só quero esta passista afortunadamente em minha ideia, eu quero o
pleno conhecimento do seu corpo modelar. A terei em meu domínio, a terei em
minha paleta, a terei em minha tela em branco e pincéis aptos para o meu
lograr.” Na parte intitulada “Telas”, descreve os óleos sobre telas que pinta,
e aqui a escrita competente de Paulo Ribeiro nos faz visualizar as pinturas,
entre elas, uma denominada “Propineiros”: “(...)Dou-me por satisfeito e lavo os
pincéis. Minhas figuras, a propósito, estão também ali a lavar.” Bem sabemos o
que elas lavam.
“Os pássaros de Ícaro”, por sua vez, beira o fantástico e
nos lembra a telenovela “Saramandaia”. Numa cidade chamada Oaio do Sul, em
homenagem à cidade americana, um ser com asas cai na torre da igreja. Esse ser
é Ícaro, transgressor por excelência, tendo em vista que, de acordo com a
mitologia grega, voou alto com suas asas de cera, desobedecendo a orientação de
seu pai. Querendo aproveitar-se eleitoralmente da situação, o prefeito Gordon (boa
parte dos personagens tem nome americano) cria um plano mirabolante. A
elaboração da linguagem do conto é importante, principalmente quando dá voz aos
moradores, cujo vocabulário necessita de um glossário no final, principalmente
para quem não mora no interior do Rio Grande do Sul.
Chegamos depois a outra narrativa, “As mãos trêmulas do
aeiou”, cujo espaço temporal percorre dos anos 40 aos 70, começando com um
professor de português numa pequena cidade, Usina de Touros, até desembocar nas
mulheres (suas ex-alunas), que lutam contra a repressão. “Em ditaduras
militares, merda, mijo e vômito vira uma areia movediça aos pés acostumados aos
regimes democráticos. Quanto mais se mexe, mais afunda na merda, no mijo, no
vômito. Urubus ali não sobrevoavam. Nem aos urubus apetecia aquele caldo
bárbaro e fedorento.”
“O cabelo de Dalila” fecha o livro, numa tour de parágrafos
fragmentários e rápidos, em que um escritor fala sobre Dalila, mas também sobre
sua criação literária, um romance sobre duas famílias e sobre ele mesmo, que
tenta escrever: “O livro não anda, tchê! Oigalê!, que é coisa difícil este tal
de romance! Um escritor maragato. Um escritor de lenço colorado, as botas
fedendo a esterco, e buscando o referencial lá num irlandês.”
Vale ressaltar a inventividade de Paulo Ribeiro,
transgressor por trabalhar com as palavras além de apenas contar histórias,
transgressor por ser verdadeiramente um escritor que valoriza o leitor
inteligente, enquanto muitos escrevinhadores buscam apenas “likes” nas redes
sociais. Que este período dedicado exclusivamente à literatura nos traga outros
bons livros como este.
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