Júlio Nogueira escreve sobre "Quincas Borba"
Estou desmotivado para
escrever sobre livros, mas o Júlio Nogueira, meu mestre imaginário e
colaborador do meu blog (autor, para quem não sabe, de um “esboço da minha
biografia precoce não autorizada”) enviou pelos Correios há dois meses (só chegou
agora) um manuscrito com uma de suas notas de leitura (no caso releitura).
Aproveito para perguntar: quando os cadernos com as notas de leitura de meu
outro mestre (este bem real), Elenor Schneider, virão a público?
Notas de leitura sobre Quincas Borba, de Machado de Assis
Apesar de ser considerada uma das obras-primas de Machado de
Assis, Quincas Borba não é um romance tão conhecido como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. No entanto, o Bruxo do Cosme Velho mais uma vez
mostrou toda a sua criatividade e empenho de fazer uma obra diferenciada para a
época, a começar pelo título, que confunde propositalmente o leitor.
Para algum desavisado, o Quincas Borba que intitula o livro
seria o mendigo filósofo, amigo de Brás Cubas, e a narrativa contaria, por
conseguinte, a vida dele. Na verdade, relata a sua morte. O criador do
Humanitismo aparece somente no início, quando explana a um discípulo sua teoria
e depois deixa sua herança a esse mesmo discípulo com a condição de que
cuidasse do seu cachorro, cujo nome é o mesmo de seu dono (e que muitas vezes,
fruto da loucura do segundo dono, parece encarnar o verdadeiro Quincas). É o
cão, portanto, que dá título ao livro. Ainda assim, porém, não é o animal o
protagonista, mas Rubião.
O narrador é em 3ª pessoa, característico das obras
realistas, e é o próprio Machado, pois no capítulo IV afirma ao leitor ter sido
o autor de Memórias póstumas de Brás
Cubas. A intratextualidade era uma novidade na literatura brasileira. Cubas
também dá o ar da graça em Quincas Borba,
desta feita bem vivo, numa participação especial, ao mandar uma carta para
Rubião noticiando que o filósofo morrera em sua residência, como sabemos desde
a leitura do romance anterior. A reutilização de personagens de uma obra para a
outra levou Machado a escrever, num curto prólogo à terceira edição do romance,
que um amigo sugerira que elaborasse uma trilogia, fazendo de Sofia uma
protagonista de outra obra. Ele chegou a cogitar essa possibilidade, porém constatou
que a personagem já estava completa ali. Como leitor, me pergunto como seria
esse outro possível romance se fosse escrito por Machado. E, se o fizesse, será
que existiria Dom Casmurro?
Vamos então às personagens que realmente interessam em Quincas Borba. Rubião é um professor na
cidade de Barbacena, interior de Minas Gerais, onde Quincas estabeleceu
residência. Este se interessa pela irmã daquele, Maria da Piedade, que não corresponde
às investidas do filósofo. Logo ela morre e Rubião se torna discípulo de
Quincas o qual, pela relação de amizade, coloca o quase cunhado como herdeiro
universal em um testamento. Com a morte de seu mestre, o pobre mestre-escola
vira de uma hora para outra um milionário.
Quando decide morar no Rio, encontra no trem o casal Sofia e
Cristiano Palha. Rubião conta a eles sobre sua sorte. Ficam amigos e ele cai
nos encantos da mulher, que mantém uma atitude ambígua em relação a ele, com a
anuência de Cristiano. O casal e outros amigos que o novo rico conquista formam
um tipo característico das narrativas machadianas: o parasita social, aquele
que gruda em alguém e suga as forças do indivíduo ou apenas se encosta em outro
para viver uma boa vida. Palha, Sofia e Camacho, dono de um jornal
oposicionista, aproveitam-se da fortuna e da ingenuidade (que acaba em loucura)
de Rubião para benefício próprio.
Com o delírio de Rubião, a importância de Quincas Borba, o
cachorro, cresce. Os indícios de loucura do dono começam a aparecer quando ele
ouve vozes, imaginando que a alma do filósofo está dentro do cão. Mais adiante,
apara sua barba como a de Napoleão III e imagina ser o próprio.
Não é um romance tão bom como as duas outras obras-primas
machadianas, mas vale pelas referências literárias e filosóficas que vão
surgindo ao longo da narrativa, assim como as sutilizes dos caracteres das
personagens, sempre ambíguas e dissimuladas. Apesar de afirmar que Sofia está
toda no romance, Machado de Assis deixa em aberto a vida dela, pois não sabemos
sobre seu futuro com o marido na nova fase de rica (com a mãozinha do Rubião,
que é abandonado por eles) e nem mesmo como termina seu amor por outro
personagem, Carlos Maria. É um romance que deve estar entre os volumes da “Livraria
das obras inéditas”, conto de Nelson Bond, e na biblioteca das obras sonhadas
de Sandman, da história em quadrinhos
homônima de Neil Gaiman.
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