“Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?”

 

(crédito das fotos: divulgação da Pallas Editora)


Desde pequeno me misturei com amigos negros e suas mães que se tornaram minhas tias e algumas também minhas mães, depois namorei e me casei com uma negra, minha família, portanto, também é negra, minha filha é negra. Por isso, me embrenhei na cultura negra, samba, carnaval, hip hop, tive algumas experiências curiosas com a religião de matriz africana, morei no morro, casa de madeira cheia de cupins e frestas, sei o que é ser pobre, sei o que é ser pobre e além disso ser de uma etnia olhada de lado pelos descendentes de alemães, como eu sou, quando se queria, por exemplo, simplesmente botar para ensaiar a bateria de uma escola de samba e ser impedido pelo poder público devido ao “barulho”, sendo que a Oktoberfest faz muito mais.

Nunca explorei esse meu lado de periferia na minha literatura. Muitos pensam que sou um branco privilegiado de classe média, portanto sem “lugar de fala”, o que eu acho uma besteira. Nunca tive privilégios. Minha mãe foi safrista de indústria fumageira e trabalhou na limpeza de outras empresas e lojas. Minha esposa foi empregada doméstica, mesma profissão de sua mãe, depois também safrista e hoje trabalha em supermercado. Eu trabalhei com meu pai na sua humilde marcenaria, depois fui auxiliar de escritório em um motel e, antes de ser professor, trabalhei em uma empresa de remessas expressas, recolhendo cartas, amostras de fumo nas empresas de tabaco, documentos, gastando o solado do tênis em longas caminhadas. Em um determinado momento, eu e minha esposa ficamos desempregados ao mesmo tempo, quando começávamos a erguer nosso barraco de madeira num terreno íngreme nos fundos da casa da sogra, e depois vimos os enormes alicerces desabarem na chuva, enquanto morávamos de favor com meu cunhado que morava no mesmo terreno.

Por que estou escrevendo isso? Sei lá, neste quase ensaio que pretendia escrever sobre uma obra literária recente e que me toucou muito, deixei os dedos correrem no teclado, pois a leitura me fez rememorar dificuldades, injustiças, lutas por algo melhor, quedas e superações que vivi com minha família. “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo (Pallas Editora, 104 páginas), publicado em 2014, mas já um clássico contemporâneo, não tem esse título por acaso. Ao mesmo tempo que nos faz chorar, nos faz olhar no espelho e ver um mundo doente, como diz a canção do Renato Russo. Me lembrou do espelho, que foi meu pai, espelho que se quebrou, como cantou João Nogueira, numa morte estúpida provocada por um motoqueiro que ficou impune. Lembrou minha mãe e seus pratos à base de mortadela que ganhava do frigorífico onde trabalhava (massa com mortadela, carreteiro de mortadela, mortadela frita), numa época difícil financeiramente. Me recordou da mulher negra batalhadora que é minha sogra, que limpava as salas da universidade onde depois seu genro foi estudar e que, nas horas extras e até nos finais de semana, faxinava a casa dos professores e do reitor. Me lembrou da minha esposa, mulher negra que, depois de anos de labuta, tem um cargo um pouco melhor num supermercado, porém chega em casa sempre cansada, muitas vezes tarde da noite, já que precisa esperar que os clientes decidam ir embora mesmo depois de fechado o estabelecimento.

São assim as personagens de Conceição Evaristo. Mulheres, homens e crianças da periferia, principalmente negras e negros, que lutam, desistem, resistem, perdem, ganham, morrem, sobrevivem, trabalham, mendigam, traficam, roubam, são roubados, linchados, assassinados, vítimas de bala perdida, engravidam, abortam, dão à luz a muitos filhos, transmitem “o legado da nossa miséria”, sofrem racismo, preconceito de cor, preconceito social, amam, odeiam, sonham, se frustram. São histórias bem contadas e arquitetadas por uma escritora negra que venceu muitas barreiras e publicou esse seu primeiro livro com mais de 60 anos, depois de se tornar professora universitária.

Ler “Olhos d’água” é encher os olhos de lágrimas, é refletir sobre a condição humana e se revoltar. Ler Conceição Evaristo é uma obrigação.

(Cassionei Niches Petry, ex-escritor e ex-crítico literário, hoje somente um professor.)


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