O estranho e real mundo de Samanta Schweblin

 



por Cassionei Niches Petry

    Samanta Schweblin é uma das grandes escritoras da literatura argentina contemporânea. Em boa hora, a editora Fósforo reúne seus dois livros de contos em um volume, Pássaros na boca e Sete casas vazias (tradução de Joca Reiners Terron). São narrativas que têm como norma causar estranhamento no leitor, que já se sente impactado pelo primeiro conto, “Irman”. Em um bar de beira de estrada, duas pessoas são recebidas por um anão que não pode atendê-los a contento, pois a mulher que lhe alcançava os produtos necessários para a elaboração do cardápio está estirada na cozinha, provavelmente morta, e eles tentam de várias formas terem seus pedidos atendidos.

    Em “Mulheres desesperadas”, noivas são abandonadas pelos maridos em um banheiro de beira de estrada. “Na estepe”, um casal sente inveja porque seus vizinhos conseguiram adotar um ser, cuja misteriosa origem e fisionomia não nos é revelada. Em outro conto, um personagem diz que estranhamente está “perdendo velocidade”. Em “O cavador”, um buraco interminável está sendo cavado, o que me fez lembrar de “O edifício”, do brasileiro Murilo Rubião, também mestre do absurdo.

    Em outro conto um pintor expõe quadros em que cabeças são golpeadas no asfalto. Em “Matar um cão”, a prova para um criminoso ser admitido em uma organização é matar cachorros a pauladas. Estes dois contos são violentíssimos.

    O relato “Pássaros na boca” lembra “Carta a uma senhorita em Paris”, só que às avessas. Se no conto de Julio Cortázar a personagem vomita coelhos, a personagem de Samanta Schweblin engole pássaros. Mas o melhor conto do primeiro livro é “Rumo à alegre civilização”, em que um homem não consegue trocar uma passagem de trem e se vê preso na estação. Não conto mais para não estragar as surpresas e o estranhamento do enredo.

    Havia uma tradução anterior do livro por aqui, mas que não teve a repercussão que mereceu, por exemplo, o romance Distância de resgaste, que tornou Samanta Schweblin conhecida por aqui. Kentukis, outra narrativa da autora, também teve boa acolhida.

    Inédito no Brasil estava Sete casas vazias. Para mim foi inevitável ler os contos sem pensar nos estudos do filósofo francês Gaston Bachelard. Para ele, a casa representa o ser em seu interior, cada cômodo e andar simbolizando os estados da alma. O filósofo também atribui à casa o símbolo feminino de proteção, refúgio. O que vemos nessa obra de Samanta Schweblin são almas vazias, mulheres desprotegidas e em busca de proteção.

    Também me chama a atenção a escolha do número sete. Por que este número? O livro originalmente se chamava “Las casas vacías”, contando com seis narrativas ganhadoras de um concurso. Posteriormente foi acrescentado outro conto, “Um homem ser sorte”, que destoa (aparentemente como vamos ver mais adiante) dos demais. Por acaso (ou nada é por acaso?), chegou aqui na toca deste crítico há pouco tempo o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alan Gheerbrant, que reserva boas páginas para o verbete sobre este número (há um verbete sobre a casa também), que “simboliza um ciclo completo, uma perfeição dinâmica”, “indica o sentido de uma mudança (...) de uma renovação positiva”, entre outras representações. A busca da autora pela perfeição formal talvez seja a justificativa. No meu ponto de vista, ela alcança esse êxito.

    No conto “Nada disso tudo”, a narradora acompanha a mãe num estranho hábito: entrar na casa de outras pessoas para modificar a decoração, trocando os objetos de lugares ou sugerindo novas cores, etc. A inveja sai do campo do desejo e se realiza de forma invasiva. Outra mulher, a vítima que não consegue conter a invasão, se desprotege ao abrir a casa e ela própria se vê impelida a fazer o mesmo.

    “Meus pais e meus filhos” é o único conto cujo ponto de vista é masculino. O narrador, um pai divorciado, leva seus pais idosos para ver os netos que moram na casa da mãe. Acontece que os velhos, enquanto as crianças estão no supermercado com o padrasto, correm nus pelo quintal tomando banho de mangueira e a mulher pede para ele tomar uma providência: “Vão morrer de vergonha dos avós”.

    Outros contos seguem na mesma linha: ou de mulheres que deixam alguém entrar em sua casa (vizinhos que atiram peças de roupas do filho morto no outro pátio e batem na porta da vizinha para buscá-las de volta) ou que saem de casa por sem sentirem sufocadas, porém perdem sua proteção (caso dos contos “Quarenta centímetros quadrados” e “Sair”).

    “Um homem sem sorte” não se passa em uma casa, como os demais contos, porém a menina que quase sofre um abuso estava fora do lar, num hospital, junto com a família para socorrer sua irmã que havia se intoxicado com água sanitária. Ou seja, saiu de sua proteção. Para alguns críticos, esse é um dos melhores contos do livro, rivalizando com “A respiração cavernosa”, em que uma senhora com Alzheimer vive com o marido que deixa entrar no pátio um garoto da casa ao lado. Um conto cheio de surpresas e reviravoltas, num trabalho preciso sobre a questão da memória e a perda da sanidade mental.

    Mais centrado no real e no que de mais estranho e fantástico ele nos oferece, Sete casas vazias se difere de Pássaros na boca, mais fantasioso. Ambos, no entanto, são leituras essenciais.

 (Texto publicado também no site Crônicas cariocas.)

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