Nossa odisseia diária


Meu texto no jornal Gazeta do Sul de hoje


Um livro pouco comentado do escritor francês Albert Camus é O exílio e o reino, um conjunto de contos publicado em 1957, mesmo ano em que o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Como curiosidade, entre as histórias temos “A pedra que cresce”, ambientada numa fictícia cidadezinha do Brasil.

São narrativas em que os personagens se veem ora num exílio geográfico, ora num exílio psicológico: longe de seu lar, país, região, isolados, solitários ou então com sentimento de não encontrar o seu lugar no mundo, estranhos a si mesmos. O que mais desejam é voltar para os seus reinos: sua nação, sua língua, sua religião sua arte ou simplesmente sua casa. Para tanto, porém, há obstáculos, como governos autoritários ou apenas a inércia do indivíduo.

Ulisses, em A odisseia, de Homero, está fora há 20 anos de sua Ítaca, impedido pelos deuses de voltar ao seu reino por tê-los afrontado. Seu filho Telêmaco, que viu apenas quando bebê e, portanto, não conhece, o espera, assim como sua esposa, Penélope, que resiste ao assédio dos pretendentes, que desejam desposá-la e assumir o trono vazio. Na tentativa de retorno, o herói enfrenta muitos perigos e tentações, sucumbindo a algumas delas e resistindo a outras, como o canto das sereias.

Em “Canção do exílio”, poema de Gonçalves Dias que empresta seus versos ao Hino Nacional, o eu lírico está em Portugal, longe da natureza exuberante do Brasil, com saudade das palmeiras e do canto do sabiá, das noites estreladas, dos bosques floridos. Em “Sabiá”, Tom Jobim e Chico Buarque, no final dos anos 60, numa relação intertextual com o poema do século XIX, cantam o desejo de voltar para a pátria e anunciar o dia que substituirá a noite, ou seja, o fim da ditadura militar que motivou o exílio.

O exílio, segundo os dicionários, é o afastamento forçado ou voluntário de sua terra natal. De modo figurado, é se sentir fora do seu lugar, como a própria casa. Este cronista que vos escreve, que gostaria de estar no seu reino, tem sua odisseia diária quando precisa sair para trabalhar, enfrentando deuses que lhe ordenam o que deve fazer e criaturas que às vezes querem puxá-lo para o fundo do mar. Ele resiste porque quer voltar para sua esposa e sua filha e também para sua biblioteca, onde seus livros fielmente o aguardam, esperando serem abertos e lidos.

Os brasileiros e brasileiras somos Ulisses, nos exilamos todos os dias e no final voltamos para nosso reino, para nossas Penélopes e nossos Telêmacos, estes que muitas vezes estão dormindo quando chegamos e estranham quando os pegamos no colo. Somos os heróis, portanto, não da mitologia, mas sim da vida real. 

Cassionei Niches Petry – professor e escritor


Comentários

Mensagens populares