Um pouco de melancolia não faz mal a ninguém


                          

   Um pouco de melancolia não faz mal a ninguém 

“Com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Assim o personagem Brás Cubas escreveu suas memórias póstumas, na memorável e hoje mundialmente reconhecida obra literária de Machado de Assis. Parece que dessa forma foi escrito 2024.
O autor que escreveu o roteiro do ano que está terminando deve ser um bom gozador, que cria situações para que possa rir da nossa cara. Na política, no comportamento, nas relações sociais, a todo momento somos submetidos a momentos bizarros, inacreditáveis e tragicômicos. Só nos últimos meses, podemos nos lembrar do sujeito vestido de forma parecida com o Coringa, que tentou jogar bombas na estátua da justiça em frente ao STF e depois tirou a própria vida por uma causa antidemocrática, mostrando o quão ridículos podemos ser. Também podemos citar a moça que, sem abrir a boca, ouviu impropérios por não ceder o lugar da janela do avião a uma criança chorona, depois ganhou milhões de seguidores nas redes sociais e se transformou numa “influencer”, ficando rica de uma hora para outra, enquanto outros batalham diariamente para ganhar o mínimo necessário para sobreviver. São tantos os momentos peculiares pelos quais passamos, que não dá para enumerá-los em um curto espaço.
Não podemos, porém, deixar de dizer que terminamos mais um ano de forma melancólica. Com o cotovelo sobre uma das pernas, apoiamos o rosto com as mãos, olhamos para o horizonte como a “alma afligida” da gravura do pintor alemão Albrecht Dürer, de 1514, justamente chamada “Melancolia”, e pensamos: o que fizemos até agora valeu a pena? Por que tanto revezes nessa vida? Isso pode ser confundido com o desânimo, com a desistência. Por outro lado, o estado melancólico é uma forma de reflexão que pode gerar coisas positivas. Grandes artistas foram melancólicos e, com suas obras, provocaram a busca de soluções para os problemas do ser humano. A felicidade pode nos deixar satisfeitos e achar que está tudo ótimo, porém a desventura permite um olhar diferente e revela o que podemos mudar. “Mas toda dor vira alegria”, escreveu Robert Burton em poema que serve de introdução ao primeiro dos quatro volumes de A anatomia da melancolia.
Jean Starobinski, em monumental livro sobre o tema, questiona: “será que a tinta da melancolia, de tanta opacidade e de tantas trevas, consegue conquistar um maravilhoso poder de reverberação e cintilação?” Um pouco de introspecção é necessário para o indivíduo repensar suas atitudes, e momentos melancólicos, como costuma acontecer em meio a festas de fim de ano, propiciam isso, desde que, claro, a tristeza não se torne depressão. Aí até aquele tio galhofeiro, o do “é pavê ou é pra comê” ajuda nessas horas, e o sorriso retorna. Felicidades, caro leitor.
(Cassionei Niches Petry – professor e escritor, autor de Desvarios entre quatro paredes, Editora Bestiário.)

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