Sonha Vila-Matas com escritores elétricos?
por Cassionei Niches Petry
Sem abandonar a metaficção, seu recurso literário principal, Enrique Vila-Matas insere elementos de ficção científica em seu recente romance, lançado no último mês de abril na Espanha, Canon de cámara oscura (Seix-Barral, 224 páginas, disponível em e-book). Em época de IA, o narrador é um androide que também escreve, mas tem como função principal na história reunir, orientado por seu mestre de escrita, Altobelli, um cânone de 71 livros que serão armazenados em uma habitação escura de sua casa, mais precisamente no quarto de sua filha, que não mora com ele.
Sim, o androide, um modelo Denver-7 (“lo que realmente soy: un Denver que no quiere humanizarse más de lo que ya lo está”), se chama Vidal Escabia, tem vida própria, foi casado, tem uma filha chamada Ryo e se mistura entre as pessoas, sem que saibam da sua condição. Mas há quem desconfie de sua identidade, caso de sua namorada, Violet, que pergunta: “‒ Eres uno de ellos, ¿no?”
A narrativa vai se construindo a partir dos livros colocados ou retirados do cânone, citações são pinçadas num mosaico de frases e parágrafos que refletem a “vida” de Vidal (os nomes nunca são gratuitos em Vila-Matas). Quando lembra que Altobelli era conhecido como “el fracasista”, o narrador também se coloca como um, e ainda coloca no cânone outro “fracasista”: “Y un detalle ahora nada menor: el diario de Ribeyro, La tentación del fracaso, un fragmento que siempre me persiguió, lo trasladé al Canon el viernes de la semana pasada. Ni que decir tiene que la presencia de Ribeyro era imprescindible en todo ese ritual matinal de reencuentro diario con mi pulsión de escritura, ritual basado en tres movimientos: biblioteca, ventanal y gabinete.”
Como nos romances de Vila-Matas muitas vezes se confunde o narrador-ensaísta com o próprio escritor, tudo nos leva a crer que Vidal Escabia é o alter-ego do autor. Aqui o androide ironiza isso, mas sabemos que é o próprio Vila-Matas jogando com o leitor: “Y de pronto, como si leyera lo que puedo estar pensando, se gira con mirada agresiva y pide que le explique qué es todo eso que tanto dicen de si yo un día escribí sobre los que dejan de escribir y que al otro día cambié y escribí sobre los que no escriben aunque escriban, y todo para concluir que escribir siempre ha sido tratar de escribir lo que escribiríamos si escribiésemos, aunque no escribamos… / Ya llevo demasiado misterio y demasiado cansancio acumulados. Y que me confundan con otro escritor es lo que menos puede divertirme en este momento.”
Vila-Matas sonha uma narrativa em que cria uma Inteligência Artificial que imita seu estilo. O trocadilho no título dessa resenha justamente remete ao romance de Philip K. Dick, inspiração para o filme Blade Runner. Embora Vidal não cite em nenhum momento o autor de Androides sonham com ovelhas elétricas?, indiretamente percebemos a intertextualidade com essa obra-prima da ficção científica em trechos como “Qué relativa calma, pero paz a fin de cuentas, tener al Auctor en las alturas y como escudo de protección de cualquier cazandroides que pueda aparecer en algún momento” e “Pero cuento hasta diez, como si contara ovejas eléctricas de las que le deben de gustar al refugiado narrador, y el enfado se va borrando.”
Sempre saímos de uma obra vilamatiana com uma lista de livros para ler, de autores conhecidos a outros nem tanto. Com Canon de cámara oscura não é diferente. Vila-Matas escreve literatura pensando em literatura, seu tema é a literatura, já explorou quase tudo sobre literatura, inclusive a tentativa de fugir da própria literatura. Quem o lê, geralmente, também pensa a todo momento em literatura. O que mais podemos esperar desse autor? Que seu próximo livro narre o fim definitivo do que conhecemos como literatura? Depois da IA, é o que nos resta.
Comentários