Sobre "Bestiário", do Cortázar, no BarataVerso

 



Coelhos, mancúspias e tigres na sala

por Cassionei Niches Petry


Bestiário, primeiro livro de contos, digamos, oficial de Julio Cortázar, foi lançado em 1951. Antes, o escritor argentino já havia publicado A outra margem, que depois rejeitou, numa autocrítica injusta, no meu ponto de vista, mas que pelo menos ainda pode ser lido nos Todos os contos, editados pela Companhia das Letras, editora que também traz agora uma nova edição de Bestiário, com tradução de Heloisa Jahn. Motivo (ou desculpa deste resenhista) para reler o livro e comentá-lo.

Em “Casa tomada”, que abre a conjunto de contos, dois irmãos vivem sozinhos em uma ampla residência e começam a ouvir ruídos em alguns cômodos: “O som vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre tapete ou um abafado murmúrio de conversação.” Acabam concluindo que algumas peças estavam sendo ocupadas, não se sabe, pelo menos o leitor, por quem. Continuam seus afazeres diários (limpeza, leituras, tricô) como se tudo fosse normal, apenas incomodados por terem de deixar coisas importantes para trás devido a “eles”. A ocupação continua até que ficam na rua, “apenas com o que tínhamos no corpo”.

Uma narrativa do estranhamento, pois, afinal, não se fica sabendo quem são esses invasores. Em Cortázar, o que seria um absurdo se torna comum. Conforme ele mesmo afirmou, no ensaio “Alguns aspectos do conto”, presente no livro Valise de cronópio: “Quase todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de nome melhor, e se opõem a esse falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do século XVIII (...)”. Ele percebia essas brechas de anormalidade na normalidade e, com um talento ímpar de manipulador de palavras, transformava tudo em arte. “Casa tomada” surgiu de um sonho do escritor, mas a crítica relacionou o enredo como uma alegoria do peronismo que chegava à Argentina nos anos 40. Cortázar não descartava essa leitura, embora não tinha isso em mente quando escreveu o conto. Faz jus a um dos aspectos da obra aberta, preconizados por Umberto Eco: “grande parte da literatura contemporânea baseia-se no uso do símbolo como comunicação do indefinido, aberta a reações e compreensões sempre novas”.

As circunstâncias estranhas, irreais (ou surreais), se sucedem nas demais narrativas: um homem, tradutor como Cortázar, vomita coelhinhos, em “Carta a uma senhorita em Paris”; no conto “Distante”, a jovem Alina, que gosta de criar palíndromos e anagramas, encontra uma outra Alina em uma ponte (há muitas pontes nos contos cortazarianos) em Budapeste e troca de vida com ela; “Ônibus” trata de uma mulher que entra em uma condução que se dirigia a  uma localidade onde havia um cemitério e recebe olhares estranhos dos demais passageiros, do motorista e do cobrador; a criação numa fazenda de animais chamados mancúspias (seres criados pela imaginação de Cortázar), em “Cefaleia”; a jovem, “viúva” de dois namorados, faz bombons recheados com conteúdo duvidoso para o terceiro, no conto “Circe” (referências mitológicas também são uma constante na obra de Cortázar); em “As portas do céu”, um homem pensa que viu sua amada morta dançando tango em um cabaré.

O conto que fecha e também empresta o nome ao volume tem ressonâncias com o primeiro, numa circularidade cara ao autor. Os moradores e visitantes de uma casa, quando vão percorrer seus cômodos, precisam ser alertados, pelas pessoas que conhecem o perigo, sobre onde está o tigre, animal exótico, com o qual já estão de certa forma habituados. “Quanto a mim não me agrada que ela vá, acredite – disse Inés. – Não tanto pelo tigre, afinal cuidam bem desse aspecto. Mas é uma casa tão triste, e só aquele garoto para brincar com ela…” E se alguém, por esquecimento ou propositalmente, esquecer de avisar os incautos? 

Em Bestiário e também em todos os outros livros de contos de Julio Cortázar, segundo Jaime Alazraki, “é possível detectar uma mesma subversão da ordem realista, uma mesma disjunção de duas ou mais imagens em busca de um interstício desde o qual – véu rasgado, terceiro olho – podemos ver o que nosso instrumento de conhecimento, a linguagem, nos impede de ver”. Vale a leitura (ou releitura).


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