Desculpe o palavrório
Meu texto no jornal Gazeta do Sul de hoje.
Desculpe o palavrório
A palavra. Sem ela, não podemos viver. Tudo leva à palavra. Inclusive o ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras” necessita de palavras para ser dito. Ou como escreveu Millôr Fernandes: “Se uma imagem vale mais do que mil palavras, então diga isto com uma imagem”.
Para os cristãos, tudo começa pela palavra: “No começo a Palavra já existia”, diz o primeiro versículo do “Evangelho segundo São João”, na versão da Bíblia que tenho na minha biblioteca. A criação do mundo se deu a partir da palavra divina. As palavras têm poder, repete o senso comum.
O escritor diante da página em branco precisa preenchê-la com palavras. Às vezes, elas faltam. Outras vezes, no entanto, vêm aos borbotões. Em excesso, porém, é um problema. A palavra exata é o que o escritor busca. Aquela que diz o que tem ser dito, ou que, pelo menos, sugere significados ao leitor, e este, por si mesmo, completa o sentido.
Acontece que atualmente (na verdade sempre, mas hoje me parece bem pior), as pessoas estão distorcendo as palavras. As pessoas estão distorcendo as frases. As pessoas estão distorcendo os textos. As pessoas estão distorcendo o que as outras pessoas querem dizer. Alguém nesse momento deve estar distorcendo minhas palavras. Jogar com as palavras é a regra. Tudo é mal interpretado, ora por ignorância, ora de forma proposital, com intenções duvidosas.
Palavras como democracia não têm o mesmo sentido para todos. O seu contrário, a ditadura, também não. A expressão “dou a minha palavra” não transmite mais confiança. Idem para “palavra de honra”. A “última palavra” não é mais a definitiva. “Palavra de rei” não é mais obedecida. “Palavrão” já não ofende mais.
Ninguém mais mede a palavra. Ninguém cuida o que vai dizer. Os xingamentos proliferam nas redes sociais onde, segundo Umberto Eco (cujas palavras ecoam nos meus pensamentos), “se deu voz a uma legião de imbecis”. As palavras, dessa forma, machucam.
Como escreveu Drummond, “Lutar com palavras / é a luta mais vã”. O ofício do escritor é lidar com elas todos os dias. Por sorte, não faltam palavras para me expressar, entretanto, sei que o que escrevo são palavras ao vento. Às vezes me pergunto por que escrevê-las. Já não há palavras que chegam no mundo? Como cantou Renato Russo, “palavras são erros e os erros são meus”. Peço perdão, portanto, pelo palavrório, mas espero que sirva para alguma coisa.
Cassionei Niches Petry – professor e escritor, autor de Desvarios entre quatro paredes. É membro da Academia de Letras de Santa Cruz do Sul.
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