Com a espada no pescoço
Sherazade precisava
contar histórias todos os dias, caso contrário seria morta pelo marido em As mil e uma noites. O paranaense Marcio
Renato dos Santos parece ter a mesma sina, pois está publicando novas coletâneas
de contos a cada ano. A alusão é inevitável, tendo em vista que o título de seu
novo livro dialoga com o clássico árabe, que por sua vez empresta um trecho para
a epígrafe da obra. Outras dezessete
noites, lançado pela Tulipas Negras, de Curitiba, tem 120 páginas e é o 6º
livro do autor.
Diferentemente das
outras coletâneas de Marcio Renato dos Santos, há pouca experimentação de
linguagem nessa. A preocupação agora é realmente contar histórias que nos
envolvam, no seduzam, nos prendam na leitura, apesar da curta extensão dos
contos. Há personagens que são retomados na história seguinte, algumas vezes
narrando sob outro ponto de vista os fatos, como o empresário japonês que assiste
ao show de uma banda favorita em um bar, no conto “O voo de Ryouji”, e que
depois aparece em “Essa nossa canção” a partir do olhar do vocalista da mesma banda
e na mesma apresentação. Ambos se sentem solitários no meio da multidão. Aliás,
diga-se, a solidão é um tema constante nos demais enredos.
Em “Mixed emotions”, por exemplo, Sofia
prepara uma janta em sua casa enquanto recebe visitas que, do nada,
desaparecem, até notarmos que são alucinações de um ser solitário. Em “Porta
aberta”, Fauzi, um empresário e pai de família, acaba fugindo do lar, simulando
um desaparecimento, e se esconde, vivendo solitariamente como mendigo, porém
próximo de sua casa. “Sabe qual é o melhor lugar para se esconder? Na frente de
todo mundo”, ele diz. O enredo lembra “Wakefield”, de Nathanael Hawthorne.
Locais de trabalho
viram cenários de histórias, como a redação de um jornal e seus conflitos de
interesses, em “O benefício da dúvida”, conto que abre livro. Um escritório é o
ambiente de “Maria”, em que uma faxineira vira alvo de cobiça dos homens presos
a seus computadores, sendo que ela também deixa brecha para uma eventual
escapada no final de expediente.
Há também os contos
que têm as ruas da cidade como cenário. Em “Quase a céu aberto”, um casal perambula
de táxi e se assusta com a pobreza, a miséria e as esquisitices das ruas. Em “Elogio
tem preço”, o João da Bíblia, além de pregar nas calçadas as palavras do livro
que lhe dá alcunha, é pago para proferir algumas palavras denunciatórias, como
por exemplo, gritar na frente de uma empresa: “José é corno! Corno manso! É
corno e deve ser cego!”
Como se não
bastasse, podemos ler ainda um conto em que um sujeito, refugiando-se de um
crime, vai trabalhar num regime de semiescravidão para um chinês, produzindo
pastel em cuja carne bovina moída mistura restos de carne de cachorro! Retrato,
como todos os outros contos, de um país tão insólito como as histórias de As mil e uma noites.
Só espero que Marcio
Renato dos Santos continue com uma espada perto do pescoço e imite Sherazade, sem
parar de contar suas histórias.
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