Resenhas sobre obras de Machado de Assis - I
“Rabugens de
pessimismo”
Apesar de assinar sempre como
escritor os textos que publico no jornal ou na internet, não é essa a função
que sustenta a minha família. Sou o claro exemplo do escriba amador, no sentido
de não receber e também no de amar o que faz, sem esperar receber por isso. Acabei
escolhendo como atividade profissional a de professor, principalmente de
Literatura, para poder me manter e, ainda assim, continuar falando e escrevendo
sobre livros.
É essa profissão que me dá a
satisfação de, quase todos os anos, ler e reler, quando a memória começa a
falhar (e ela sempre falha), obras literárias fundamentais. Entre elas está Memórias
póstumas de Brás Cubas, do maior escritor brasileiro, Machado de
Assis, publicada em 1881. Reli a obra em uma edição recente da
Penguim/Companhia das Letras, com prefácio de Hélio de Seixas Guimarães e estabelecimento de texto e notas de Marta de
Senna e Marcelo Diego. Edição caprichada, portanto, apesar da capa sem graça.
Brás Cubas, que
narra suas memórias, está morto (“não sou propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço”) e resolve contar a sua vida
começando pelo fim, relatando a própria morte, por pneumonia, enquanto reflete
sobre a criação de um emplastro, espécie de remédio contra a melancolia que
iria imortalizar seu nome. Antes, porém, descreve um delírio, que alguns
chamariam de uma experiência de quase morte, em que faz uma viagem em poucos
segundos por todas as eras, do passado ao futuro, guiado por uma mulher,
chamada Natureza ou Pandora (“a visão estendeu o braço, segurou-me pelos
cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de
perto o rosto, que era enorme”), que lhe apresenta os flagelos e delícias,
glórias e misérias da condição humana. “Eram as formas várias de um mal, que
ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas
vestes de arlequim, em derredor da espécie humana.”
Depois, Brás Cubas
retoma o seu nascimento, contando as diabruras da infância e os maus-tratos ao
pequeno escravo da família. No entanto, o cerne da narrativa são os seus
amores, da adolescência à idade adulta, pintados com tintas nada coloridas. O
narrador não poupa a si mesmo ao relatar a paixão pela interesseira Marcela,
mulher mais velha a quem enche de presentes. “Marcela amou-me durante quinze
meses e onze contos de réis; nada menos.” Também não esconde o misto de encanto
e desprezo por Eugênia, linda jovem que tem um problema físico de nascença. “O
pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura
tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes
um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”
Seu grande amor,
entretanto, é Virgília, que acaba se casando, devido ao interesse do pai, com
um político de carreira promissora. Tornam-se amantes durante muito tempo, até
que ela vai embora, seguindo o marido que assumirá a presidência de uma
província do norte. Quando se reencontram, já estão velhos e nada mais há entre
eles.
Brás Cubas, aos 64
anos e solteiro, morre. No final, no capítulo das negativas, afirma: “Não
alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não
conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa
fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”. Pesando os prós e
contras, o defunto reconhece seus erros e por isso declara, considerando ser um
saldo positivo, o fato de não ter deixado herdeiros: “−Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Um dos grandes
monumentos artísticos da arte brasileira, o romance mescla filosofia,
sociologia, psicologia e literatura para revelar nossa triste condição humana.
Só não é reconhecida como uma das grandes obras da literatura universal, porque
Machado de Assis teve a má sorte de ter nascido brasileiro.
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