O ventre, de Cony, e o suicídio assistido
Nascidos do mesmo
ventre, um é mais estudioso, calado, comportado, enquanto o outro vai mal nos
estudos e tem um comportamento inadequado de acordo com as normas paternas. Por
isso este é desprezado pela família, uma ovelha negra. Ele mesmo narra sua nada
agradável situação. O amor não correspondido, o amigo que era o exemplo de
safadezas e deixa de sê-lo, o irmão protegido pelos pais, o horrível internato.
José Severo, o protagonista de O ventre
(Editora Nova Fronteira, 208 páginas, também disponível em e-book) é um anti-herói à moda de Macunaíma, feio, desengonçado,
alto e narigudo, pouco inteligente, mas esperto para certas coisas (com muitos
zeros no boletim, mas “um seis em composição”). Carlos Heitor Cony estreou com
esse romance em 1959. E estreou muito bem.
O ventre aqui não é
só o útero que gera a vida, mas também o abdome da vizinha do colégio pelo qual
a mão do jovem passa até chegar aos pelos pubianos. O ventre que degenera. Apesar
das brincadeiras com Helena no porão de casa, era virgem, e trepar com uma
mulher madura lhe pareceu estranho: “Não digo que tenha me decepcionado com
aquilo. Então, era isso? E dizer que fora o melhor inventado pelos homens? Por
causa daquilo houvera guerras, dilúvios, massacres, livros e crenças! Ou eu era
diferente dos outros ou os outros tinham pouca imaginação”. No entanto, ele
volta a frequentar a cama da outra, também frequentada pelos outros colegas,
respeitando uma tabela de visitas. Acontece que ela traía o marido e, quando
este descobriu, foi justamente por um boné perdido por José embaixo da cama, o
que acaba provocando sua expulsão.
Ele sai do ventre de
sua casa, vai trabalhar como motorista de ônibus (esse ventre urbano que dá à
luz dezenas de trabalhadores em cada ponto) na cidade de Maceió, mas acaba sempre
voltando para o ventre inicial. Depois que seu pais morrem, passa a viver um
tempo com irmão e com Helena, agora casados. Outras situações vão acontecendo,
a mais problemática envolvendo o ventre de Helena. “— Você não disse ainda há
pouco que era um especialista em ventre, em equívocos de ventre?” O final,
posso adiantar, não é nada feliz.
Chamou-me a atenção
que o narrador desse romance inicial de Cony menciona volta e meia a
possibilidade de suicídio, não por desespero do personagem, mas simplesmente
por uma morte digna, como um se fosse um processo natural da existência: “Daí
programei um roteiro que ainda penso cumprir: eu me mataria um dia, sem motivo,
apenas por higiene interior, como se fosse tomar um banho. Não iria feder
diante dos outros, arrastar pelas ruas e pelos caminhos um corpo a se
transformar em lama, pasto de vermes que começariam a me comer por dentro.”
Deixar de viver também para não ser um fardo para os outros: “Porcaria viver
até o fim. Arrastar doenças e deformações da idade, a morte com penicos embaixo
das cobertas, sondas fedorentas, urinas rebeldes, parentes e vizinhos
aproveitando a confusão para se certificarem se temos fimose ou como somos por
dentro. O suicídio é higiênico, prático, barato. Não aporrinha ninguém. Nem os
médicos para dar palpites, nem os padres para as bênçãos, nem os amigos para as
missas de sétimo dia.”
Recentemente, li uma
entrevista com o Cony para o site da BBC Brasil em que fala sobre a eutanásia,
mais precisamente sobre o “suicídio assistido”. Ele, com seus 90 anos bem
vividos, está com sérios problemas de saúde, com dificuldades de locomoção e
volta e meia escreve sobre o assunto em suas crônicas. Diz que é solidário a
quem pensa sobre isso: “Ninguém quer morrer sofrendo, chorando e gritando. Eu,
pelo menos, não. Quero morrer numa boa”. E conclui: "Há casos em que os
remédios já não produzem mais efeito, a família gasta um dinheiro que não tem
e, pior, o paciente não tem mais condições de viver, só de sofrer. Se não há
uma solução médica ou científica, o suicídio assistido é a saída mais humana
que existe"
Uma questão
existencial importante, da qual a literatura não pode se furtar.
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