Resenha sobre "O céu de Lima", de Juan Gómez Bárcena


Na minha segunda colaboração com o blog do Gustavo Nogy no site do jornal Gazeta do Povo, escrevi sobre o romance "O céu de Lima", de Juan Gómez Bárcena (Editora AlfaguaraCompanhia das Letras).

Entre a realidade e a ficção
por Cassionei Niches Petry


O Céu de Lima (Alfaguara, 248 p., tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman) é o primeiro romance de Juan Gómez Bárcena, escritor espanhol de apenas 33 anos. Foi lançado em 2014 e já mereceu uma tradução por aqui. Isso é algo raro no Brasil, em se tratando de literatura da língua de Cervantes. O crítico, em casos como esse, geralmente fica com o pé atrás, ou para recuar ou para se preparar e entrar de sola no suposto best-seller. A análise positiva da obra, no entanto, feita por colegas de peso, como o professor Sergius Gonzaga, da UFRGS, não poderia ser desprezada, por isso resolvi dar uma chance ao autor.
E não me decepcionei. A partir de um caso real, envolvendo o poeta Juan Ramón Jiménez, o enredo revitaliza a metaficção. Dois jovens estudantes de Direito da cidade de Lima, no Peru, que sonham em ser poetas, escrevem cartas ao ainda não “nobelizado” escritor. A época é o início do século XX, quando Ramón Jiménez recém iniciava sua carreira. Carlos Rodríguez e José Gálvez, temendo não serem atendidos pelo mestre, decidem “enfeitar a realidade” e criam uma personagem, Georgina Hübner. Essa brincadeira, que levou o escritor a se enamorar da falsa interlocutora, resultou anos depois em um poema, publicado no volume Laberinto.
Gómez Bárcena faz dessa trama uma ficção em que, mais do que relatar o pitoresco episódio, reflete sobre a escrita, afinal os missivistas questionam a elaboração do texto, a construção da personagem (“Georgina vai ser órfã? Terá algum traço de sangue indígena, ou a cútis marmórea das brancas? Qual é sua idade exata e o que quer de Juan Ramón?”), o desenrolar do enredo, o efeito que pretende causar no receptor, a reescrita.
Além disso, um dos temas presentes é a diferença de classes. Os protagonistas são ricos, os “señoritos”, um deles de uma família tradicional limenha, o outro de uma família de origem pobre que enriqueceu no comércio da borracha: “(...) mas isto, bem mais que uma coincidência, é quase uma obviedade. Em 1904 a amizade entre pessoas de classes sociais diferentes é como uma espécie de literatura fantástica (...).” Outro amigo deles, Sandoval, é anarquista e se torna líder de uma greve no porto. Enquanto ele tem, digamos, uma preocupação social, Carlos e José pensam apenas em literatura: “Não podemos esquecer que eles acreditam ser poetas, e esta fé lhes proporciona uma ligeira elevação acima do solo, um desapego distraído a tudo o que lembre a realidade e suas prosaicas convenções.”
Presença marcante também é a do “bacharel Cristóbal, especialista em missivas amorosas e galanteios por correspondência”, um escriba que presta seus serviços na rua. Ele se torna uma espécie de consultor da dupla, lhes dando dicas de como a “prima” deles (pois não revelam que são os reais autores das correspondências) pode conquistar o poeta e constatar se este está se mostrando interessado a partir de suas respostas. São do bacharel as boas tiradas sobre o amor e a escrita a respeito deste tema: “Desista, meu amigo: o amor, como você o entende, foi inventado pela literatura, tal como Goethe deu o suicídio aos alemães. Não somos nós que escrevemos os romances, são os romances que nos escrevem...
Vale comparar a diferença da troca de correspondência entre leitor e escritor no início do século passado e atualmente. Se antes era preciso esperar semanas para uma carta chegar a seu destinatário e este enviar uma resposta, hoje o leitor tem acesso a seu autor preferido de forma mais rápida, ainda mais se ambos utilizam as redes sociais. “Fakes” como Georgina também proliferam mais facilmente. Por isso, o leitor deve entender quando o escritor ignora um e-mail ou uma mensagem nas redes sociais, afinal é impossível atender a todo mundo. Por outro lado, essa “proximidade” muitas vezes mostra um escritor distante da nossa idealização. A decepção pode ser grande.

O Céu de Lima, enfim, joga com a realidade e a ficção com bastante eficiência, sendo também uma espécie de ensaio sobre o fazer literário e também sobre o amor. Um bom romance.

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