A vida que ninguém vê
Muitas vezes as sujeiras de uma casa são escondidas debaixo
do tapete. Basta levantar uma ponta para que tudo apareça. Um lar aparentemente
belo pode escamotear conflitos e até coisas muito piores. Uma família perfeita
pode mascarar uma realidade dolorosa.
A literatura, como toda obra de arte, revela em sua sutileza
as questões mais problemáticas do ser humano. Valesca de Assis, em A
ponta do silêncio (Edições Besouro Box, 84 páginas), dá voz a todas as
mulheres machucadas, física ou psicologicamente, pelos seus parceiros e pela
sociedade que as condena por tomarem atitudes extremadas.
Narrativa curta em extensão, porém longa na reverberação, o
romance publicado em 2016 é ambientado na fictícia Cruzeiro, pequeno município de
colonização alemã do interior do Rio Grande do Sul que, apesar de ter apenas 50
mil habitantes, conta com uma Faculdade onde leciona Marga Treibel, que também
é colunista do jornal Gazeta Cruzeirense.
Seu marido, o comerciante Rudy Treibel, aparece morto e ela assume a culpa, que
poderia ser dela mesma ou então de sua filha.
Internada no hospital da cidade dirigido por freiras, está
sem voz devido a um colapso nervoso e decide se comunicar com seu ex-aluno, o
delegado que investiga o caso, por cartas. A escrita serve como forma de “erguer
a ponta deste silêncio, erguer a ponta deste grande e solitário tapete urdido
dia a dia em todos esses anos, e que é a coberta de minha vida”.
Os fios que vão aos poucos tecendo a história de Marga
revelam seu sofrimento, o silêncio, a recusa em fazer vir à tona algo que
poderia envergonhá-la diante da cidade: “Como eu iria reagir, preocupada em
defender o rosto, os olhos, a face invisível para os outros, na escola, na
missa, no baile do Germânico?” A cronista que ajudava leitoras que entravam em
contato com ela também precisava de ajuda. Agora, porém, somente a escrita lhe
serve de esteio: “é tão somente uma atormentada busca de sentido, no bordado e
na escritura”.
É inevitável, para quem como eu mora na terra natal de
Valesca, Santa Cruz do Sul, reconhecer nela a Cruzeiro de Marga, em que pese
a população real ser mais do que o dobro da cidade fictícia. Também a inspiração
para o enredo não passou batido por este resenhista. Em 2002, uma colaboradora
do jornal local (uma excelente cronista que pude conhecer pessoalmente) e
professora aposentada assassinou a tiros seu marido, depois de ele ter agredido a filha.
Um crime que abalou a cidade na época. Alguns anos depois, ela foi inocentada pelo
júri popular por ter feito os disparos em legítima defesa. Nos seus
depoimentos, trouxe à tona uma vida em família conturbada.
Nesse caso, a ficção de Valesca de Assis (autora
também dos romances A valsa da Medusa e A colheita dos dias) imita a vida e nos
faz ver a realidade que muitos não querem ver. E o faz, diga-se, com maestria.
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