Um mestre do conto sai de campo




Para muitos, o criador da camisa amarela da Seleção de futebol. Para outros, um mestre do conto. No Rio Grande do Sul, todo aspirante a contista tem que obrigatoriamente ler, analisar, estudar a fundo a obra de Aldyr Garcia Schlee, que morreu ontem, aos 83 anos. Quando tive o privilégio de conversar com ele, num evento literário na minha cidade, parecia que estava falando com um deus da escrita. E não é exagero. É fato. O homem era grande.

Da abordagem dos temas (a fronteira, o futebol) à técnica apurada, seus contos são uma oficina literária involuntária. Saímos melhores depois de lê-lo. Nos últimos anos vinha publicando romances, mas com o mesmo apuro estilístico.

Contos de sempre, de 1983 (reeditado pela Ardotempo), é sua primeira grande obra. Uma estreia maturada durante mais de uma década. Não há contos menores no livro, mas destaco Verdina, a história de “uma negra de olhos azuis”, escrava que o gaúcho Pedro, tal qual Aquiles da Ilíada, pegou para si como espólio de uma batalha (provavelmente durante a Guerra Farroupilha), em meio a corpos degolados. Encantado pelos “peitos pequenos e duros”, seu código moral, no entanto, não o deixou se aproximar mais intimamente dela, que por sua vez assumiu os afazeres da nova casa. Para o crítico Volnyr Santos, “Pedro e Verdina identificam-se momentaneamente com a substância do ato existencial, mas são incapazes de transformá-lo em felicidade”.

Além da literatura, o futebol foi a grande paixão de Schlee. Juntou as duas no livro Contos do futebol, de 1997 (também reeditado pela Ardotempo), publicado dois anos antes em espanhol, no Uruguai. Destaca-se aqui o conto “Empate”, construído em duas colunas em cada página (lembrando a Loteria esportiva) que trazem pontos de vistas paralelos da história: a primeira focando num jogador uruguaio recém-chegado ao Brasil de Pelotas, Richar, a segunda, em Maria de Lourdes, mulher por quem ele se apaixona, havendo ainda uma terceira coluna em algumas páginas em que o foco recai sobre os dois protagonistas ao mesmo tempo. O título torna-se ambíguo, podendo ser o resultado de um jogo ou a gíria para gravidez: “– Guria, o que é isso? Tu tá empatada? – disse-lhe a avó”. No final, na loteria da vida, o resultado é justamente a coluna do meio.

O mestre do canto sai de campo e deixa um legado que ainda necessita uma valorização. Que ele não seja lembrado apenas como o criador da camisa canarinho, mas sim como o grande escritor que realmente era.

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