Nós também somos animais
Completam-se 50 anos da primeira edição de O carnaval dos animais, livro de contos
de Moacyr Scliar que o transformou num dos maiores escritores do Brasil. A
L&PM aproveita a efeméride para lançar uma edição comemorativa, num momento
em que os bichos estão à solta no cenário nacional.
O título é inspirado na suíte musical de Camille Saint-Saens
e traz algumas histórias com animais como personagens, mas é o ser humano o
animal protagonista.
Em “A vaca”, por exemplo, a ruminante, carinhosamente
chamado de Carola, é quem fornece ao náufrago tudo o que ele precisa para
sobreviver na ilha deserta: o leite, a carne (que ele vai cortando aos poucos,
ainda a mantendo viva), o couro, a cauda para espantar as moscas, um dos olhos
para ingerir como alucinógeno, enfim. Há uma sucessão surreal de acontecimentos
que nos remete ao absurdo da crueldade humana.
“As ursas”, por seu turno, é um conto que dialoga com o
texto bíblico, recurso que Scliar usaria em toda a sua obra. Eliseu, um profeta,
roga uma praga aos meninos que debocharam de sua careca e eles são devorados
por duas enormes ursas. Dentro de uma delas, os jovens formam uma nova
comunidade, uma “curiosa raça de anões”, com sua própria religião, que também
tem seu profeta e que por sua vez também é zombado pelos mais jovens até que...
E segue o eterno retorno do mesmo.
Em outra narrativa, um pequeníssimo cão de guarda é treinado
para devorar marginais e o faz sem deixar um restinho sequer de carne humana.
Basta que ouça a palavra bandido para que o animalzinho mate sem dó nem piedade
o outro. Acontece que ele pode se voltar contra o próprio dono também. É aquela
coisa: dê uma arma para a pessoa despreparada e veja o que pode acontecer. Qualquer
semelhança com nossa realidade não é mera coincidência.
Em alguns contos em que os animais não aparecem, percebe-se
o lado animal de luta pela sobrevivência se sobrepor. Em “Canibal”, uma mulher se
auto devora pois sua irmã, ambas perdidas depois de um avião cair nos altiplanos
bolivianos, não lhe dá a comida que trouxe consigo em um baú. Em “Torneio de
pesca”, os competidores cortam os braços de um homem que estaria trapaceando ao
se utilizar de poderes sobrenaturais.
Há também contos com uma dose de ironia, humor sutil, humor judeu
(origem do escritor), que faz o leitor dar aquele sorriso de canto dos lábios e
não são tão violentos como os demais. E da mesma forma há histórias comoventes,
como “Trem fantasma” (que apareceu nas edições posteriores da obra), em que uma
família, junto com um amigo, reproduz para o filho doente o clássico brinquedo
dos parques de diversão, mas nos corredores da própria casa.
Eu tinha e sempre terei um carinho especial pelo Scliar, que
leu meus primeiros contos e os elogiou, em e-mail que reproduzo na quarta-capa
do meu primeiro livro, "Arranhões e outras feridas". Sua generosidade era ímpar. Relê-lo é prestar-lhe uma
homenagem e é também amenizar o lado selvagem que temos.
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