Era uma casa nada engraçada - parte 2





Outro filme perturbador de Lars von Trier, A casa que Jack construiu tem um tema inquietante, que é o assassinato como obra de arte. Penso, por exemplo, em O silêncio dos inocentes e na série Hannibal, assim como em outra série, The Following, em que os protagonistas matam e discutem sobre a questão estética dos seus atos. É um tema que me interessa não pela violência, mas sim pela metáfora (ah, metáforas, que as pessoas, por sua ideologias, pouco entendem hoje em dia!) da criação artística, mais precisamente, para mim, do fazer literário.

Jack (interpretado por Matt Dillon) é um pacato morador de uma pequena cidade dos EUA. Ao ajudar, ainda que contrariado, uma mulher (vivida, por pouco tempo, por Uma Thurman) a dar um jeito de consertar o macaco do carro (em inglês, jack) e depois trocar os pneus numa rua deserta, vê-se intimidado por ela, que não cala a boca e diz que ele parece um psicopata. Como ele nega ser um assassino (e até aquele momento realmente não era) e não demonstra reação, ela o chama de covarde. Tem início, aí, uma série de assassinatos (mais de 60) cometidos durante 12 anos, sendo que apenas alguns deles são contados.

As histórias são narradas em off pelo próprio Jack a um velho chamado Virgílio (encarnado por Bruno Ganz, famoso pelo seu papel de Hitler em A queda!), numa espécie de travessia que estão fazendo, conforme vamos deduzindo ao longo do diálogo, pois não os vemos nesse trajeto inicial. Pelo nome do velho, já se desconfia que Jack está sendo conduzido ao inferno, tal qual Dante na Divina Comédia. No epílogo, essa suspeita é confirmada, em cenas que reproduzem trechos e quadros inspirados no poema dantesco, como por exemplo uma pintura de Delacroix.

As referências artísticas dão conta da busca de perfeição artística, principalmente as reproduções das cenas de um documentário sobre Glenn Gould, em que o excêntrico pianista aparece tocando e buscando a interpretação mais exata possível da peça musical. Jack também busca essa perfeição ao fotografar as vítimas (além de sofrer de TOC, o que quase o leva a ser preso) e busca também a fama, mesmo que no anonimato, ao mandar as fotos para imprensa sob o pseudônimo Sr. Sofisticação. A experimentação artística é simbolizada na tentativa de empalhar o corpo de uma criança (um dos seus enteados que ele mata, numa das cenas mais chocantes do filme), moldando seu rosto para parecer estar sorrindo, porém com resultado insatisfatório. Todos os corpos, aliás, são guardados num câmara frigorífica abandonada, como se representasse a obra de arte que fica na “geladeira” e não é mais apreciada pelo público.

A casa do título é uma referência a uma cantiga popular americana, mas também à profissão de Jack, engenheiro, e o que ele deseja ser, arquiteto. “Um engenheiro lê música. Um arquiteto toca a música”, explica ele a uma de suas vítimas. Durante o filme, aparecem tentativas de construir sua própria casa, em formas e estilos diferentes, sendo demolida se esteticamente fica aquém do desejado. É sua grande frustração. A casa final, no entanto, o satisfaz esteticamente, mas não vou revelar aqui como ela acaba sendo construída.

Lars von Trier faz também referências a seus próprios filmes, demonstrando mais ainda que A casa que Jack construiu não é sobre um serial killer, mas sim sobre o artista, talvez o próprio Lars, sendo o filme mais um tijolo que edifica sua obra (o lugar-comum é inevitável). Esta resenha também é só um tijolo para compreender a obra. Assista o filme contribua com o seu tijolo, caro leitor.

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