Era uma casa nada engraçada



Crônica da casa assassinada, de 1959, foi o derradeiro romance de Lúcio Cardoso, se não contarmos o inacabado e póstumo O viajante. Alguns anos depois de publicar o que seria sua obra-prima, teve um derrame cerebral. Com metade do corpo paralisado, passou apenas a pintar quadros, com a mesma atmosfera sombria de seus escritos.

Crônica é complexa, dolorosa, perturbadora, e talvez por isso não seja tão lida. Temas como o incesto e a homossexualidade perpassam o romance que traz a história de uma família decadente do interior de Minas Gerais, os Meneses, contada por diferentes pontos de vista, através de diários, cartas, depoimentos, em um vai e vem temporal que precisa de muita atenção do leitor para acompanhar. Não há propriamente um protagonista, em que pese Nina, a esposa de um dos donos da casa, ser a provocadora de todos os conflitos e objeto de desejo ou de repulsa por parte dos demais personagens. A casa, pode-se dizer, é a protagonista (assim como o cortiço da obra homônima de Aluísio Azevedo, pois tudo gira em seu entorno. Ela mostra ou esconde os problemas, ela vê e julga as atitudes de seus moradores, ela os protege e os expõe, ela vive, ou sobrevive, e, por fim, é assassinada.

Para Gaston Bachelard, em A poética do espaço, “a casa é nosso canto do mundo”, “nosso primeiro universo”, “um verdadeiro cosmo”. É nesse mundo peculiar criado por Lúcio Cardoso (com direito a uma ilustração do próprio autor no começo do livro, mostrando a planta baixa da casa e do pátio) que acontecerão amores proibidos, ciúmes, rancores, mortes. A data dos acontecimentos é imprecisa, provavelmente no começo do século XX, num espaço de tempo de mais ou menos 16 anos. Começamos a entrar no enredo a partir do diário de André, em que relata o velório de Nina, sua mãe, que sofreu muito naquela casa (“quantas vezes não fora julgada e dissecada sobre aquelas tábuas?”) e ao mesmo relembra a relação de amantes entre os dois.

Tudo no entanto é nebuloso para o leitor. Somente os outros capítulos, narrados por diferentes vozes (de Valdo, de Ana, de Demétrio, da governanta Betty, do farmacêutico, do médico, etc.) vão elucidar, ainda que com muitas sombras, o que aconteceu naquela casa. Uma das vozes desse coro de desgraças é a de Timóteo, o pederasta que vive como que trancafiado e isolado do resto da casa em um dos quartos, com as cortinas sempre cerradas. Vestindo-se com as roupas de mulher, a figura gorda e maquiada causa vergonha para o irmão mais velho, Demétrio. No entanto, é Timóteo o único inocente em toda a trama. Não se pode colocá-lo como um dos culpados pela morte da casa.

A propósito da polifonia do romance, um ponto negativo é que todas as vozes têm a mesma linguagem. Não há diferença do uso de palavras de André e a tia Ana, por exemplo. Isso não tira, no entanto, o brilho da estrutura elaborada por Lúcio Cardoso para nos apresentar a trama. Se a casa está se desestruturando, a edificação do enredo é bem sólida.

É também Bachelard quem diz que a casa simbolicamente nos remete à proteção, refúgio. Ironicamente, a casa da família Meneses não protege seus membros, desamparados que ficam pelas circunstâncias. E ela mesmo fica à mercê da destruição, ainda mais quando se deixa ser “invadida” pelas pessoas mexeriqueiras da cidade para assistir ao velório.

Em uma entrada no seu Diário, Lúcio Cardoso comenta a publicação de Crônica da casa assinada, reconhecendo alguns defeitos e prevendo que a obra “encontraria a mesma repulsa e a mesma prevenção” que tiveram os outros livros. Se há esse desdém até hoje, por outro lado é um romance que volta e meia vem sendo reeditado (atualmente pela Civilização brasileira) e mereceu até uma adaptação para o cinema, nas mãos de Paulo César Saraceni, em 1971, com a atriz Norma Bengell encarnando a personagem Nina. Entretanto, carece de um reconhecimento maior.

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