Minha resenha sobre "4321", do Paul Auster, no Caderno de Sábado do Correio do Povo
Vítima da circunstância (ou do acaso)
Ler também é fazer exercício físico quando se trata de
calhamaços com mais de 1 quilo. É o caso de 4321, de Paul Auster (Companhia das Letras,
tradução de Rubens Figueiredo). Depois de quase duas semanas imerso nas mais de
800 páginas do romance, devo ter aumentado minha massa muscular. Mais do que
meus braços, porém, trabalharam muito os neurônios, numa tentativa de ler e
entender as 4 vidas de Archie Ferguson, o protagonista.
Sim, 4 vidas. São 4 narrativas distintas para um mesmo
personagem, com exceção do primeiro capítulo 1.0, que conta sua origem
familiar. A partir do capítulo 1.1, as histórias tomam caminhos distintos,
sempre na perspectiva do “e se...”, comum nos romances de Paul Auster. Se o
leitor não se perder, aproveitará uma das melhores experiências literárias de
sua vida (ou pelo menos de uma delas).
Como ler o romance? Tal qual O jogo da amarelinha, do Julio Cortázar, 4321 pode ser lido da página inicial até a final, sem pular nada
(na verdade, você vai pular alguns capítulos, mas saberá durante a leitura o porquê).
Eu li dessa forma e, para não me confundir, fui fazendo anotações sobre o que
acontecia com Archie em cada uma das partes, pois as histórias diferentes
aparecem intercaladas. Outra maneira de ler, talvez mais fácil, é seguir os
capítulos correspondentes a cada Archie diferente, lendo primeiro todos os
capítulos sobre o Archie 1, depois sobre o 2, depois o 3 e por fim o 4, como se
tivesse lendo 4 romances. O fácil, porém, vai tirar o brilho da obra. É por sua
conta e risco.
Sem deixar escapar muitas revelações dos enredos, apesar de o
próprio Auster ter entregado muita coisa em entrevistas, apresento alguns
apontamentos que fiz, que preencheram os espaços em branco nas páginas finais do
volume e outras folhas soltas. A parte 1 do romance se passa nos anos 40 e
início dos anos 50. O capítulo 1.0 é uma espécie de prólogo, contando a
história dos avós e dos pais de Ferguson, inclusive sobre a origem do sobrenome
da família judia que migrou para os EUA. Os capítulos 1.1, 1.2, 1.3 e 1.4
contam a infância de Archie Ferguson, nascido em 3 de março de 1947, mas
trajetórias de vida diferentes. Peguei como, digamos assim, um ponto de corte
para me guiar o negócio de seu pai, Stanley, figura emblemática na história (ou
nas histórias), devido à relação conflituosa entre os dois. Em 1.1, ele se
torna sócio de um irmão que depois o rouba; em 1.2, acontece um incêndio na
loja e Stanley escapa de morrer; já em 1.3, o pai morre no incêndio; em 1.4,
Stanley prospera e amplia seu negócio.
Veja bem: não são exatamente esses fatos que tornam a vida
de Archie diferente em cada um dos capítulos. Há várias outras circunstâncias. Todas
lidam, claro, com o acaso, palavra-chave no conjunto da obra de Paul Auster. O
Archie 1, quando criança, reflete sobre isso depois de ter caído de uma árvore:
“Se Chuckie não tivesse tocado a campainha de sua porta naquela manhã e chamado
Ferguson para sair de casa e brincar, não seria burrice. Se seus pais tivessem
se mudado para uma das outras cidades onde procuraram a casa certa para morar,
ele não teria conhecido Chuckie Brower, nem saberia que Chuckie Brower existia,
e não seria burrice, pois a árvore que ele subiu não estaria no quintal de sua
casa. Que ideia mais interessante, disse Ferguson para si mesmo: imaginar como
as coisas podiam ser diferentes para ele, ainda que ele fosse a mesma pessoa. O
mesmo menino numa casa diferente. O mesmo menino com pais diferentes. O mesmo
menino com os mesmos pais que não faziam as mesmas coisas que faziam agora.” 4321 é justamente o romance sobre esse
mesmo menino em circunstâncias diferentes.
As trajetórias de Ferguson então prosseguem, dos anos 50 até
o início dos anos 70: há o seu relacionamento com Amy, por exemplo, por quem em
uma das histórias nutre uma grande paixão, mas em outras as circunstâncias o
separam, ou porque se tornam primos ou porque a mãe dele (do Archie 4) e o pai
dela se casam. O Archie 3 acaba tendo uma experiência homossexual que muda sua
vida, enquanto o Archie 1 perde dois dedos em um acidente, circunstância que o
afasta da possibilidade de ser chamado para lutar na Guerra do Vietnã. Auster
explora isso de uma forma precisa, fazendo jus a Ortega y Gasset, que afirmava
que o indivíduo é ele e sua circunstância que, particularmente, não separo do
acaso.
Contar mais detalhes é estragar as surpresas que vão se
sucedendo no decorrer da história (ou das histórias). Não parece que estamos
diante de um livro longo, às vezes monótono e confuso. E esse livro é longo, às
vezes monótono e confuso. A vida é assim, longa (quando não é interrompida
pelas circunstâncias), às vezes monótona e confusa. A vida também é definida
por mínimas coisas: somos formados pelos livros que estão à nossa disposição
por diferentes motivos (uma tia que é leitora e tem muitos livros ou uma boa
biblioteca pública perto de casa), nosso gosto musical sofre influência das
pessoas que nos rodeiam e pode mudar se por acaso, mudando o dial no carro, uma
estação de rádio qualquer tocar uma música que jamais o indivíduo escutaria. O
amor pode surgir quando caminhamos na rua e pode nos fugir se, por acaso, e
sempre ele, nos distrairmos ao olhar uma vitrine. Mesmo as escolhas que fazemos
são resultado de forças aleatórias que nos rodeiam. Não somos donos reais do
nosso destino. Não fosse o acaso me fazer entrar em contato com a literatura, talvez
não estivesse aqui escrevendo sobre esse livro. E você, leitor, não fosse o
acaso de se deparar com este jornal na banca, talvez não estivesse lendo esta
resenha.
Paul Auster eleva à quarta potência sua literatura e põe na
roda um senhor romance, digno de figurar como uma das grandes obras da
Literatura Universal. E não é por acaso.
Cassionei Niches Petry
é professor de literatura e escritor, autor do romance “Relatos póstumos de um
suicida que não morreu”.
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