Na coluna do Jornal Arauto, "Caminhos e descaminhos da velha Rússia”
Flávio Ricardo Vassoler, professor e escritor paulista (e
corintiano, como faz questão de colocar no currículo), é um apaixonado pela
literatura russa e, por extensão, por toda a cultura da terra de Fiódor Dostoiévski,
sendo este o seu ídolo maior. Inteirei-me do seu trabalho há alguns anos
através da divulgação de suas pesquisas russófilas num blog e num canal de
vídeos na internet. Posteriormente, seus artigos no Estadão, mais precisamente
no suplemento Aliás e na página O Estado da Arte, o tornaram mais conhecido nos
meios literários, o que resultou num convite para escrever sobre a Rússia,
durante a Copa do Mundo de 2018, para o site da revista Veja.
“Diários de um escritor na Rússia” (Editora Hedra, 302
páginas) reúne crônicas e ensaios que Vassoler publicava diariamente durante
essa colaboração, enquanto viajava, de trem, entre as cidades que sediaram as
partidas de futebol, de Moscou até São Petersburgo, passando por Níjni
Novgorod, Sotchi, entre outras. Com uma bagagem cultural invejável e uma
escrita cujo recurso intertextual se destaca, Flávio amplia o conhecimento do
leitor, ao mesmo tempo que exige que este capte as referências literárias,
entrando num jogo em que a palavra elaborada artisticamente torna o livro um
artefato de alta voltagem estilística. Provoca, portanto, quem o lê. Como ele
próprio diz sobre a obra do autor de “Crime castigo”: “─ Decifra-me ou
devoro-te? Não. Decifra-me enquanto te devoro.”
Um bom exemplo do uso da intertextualidade é o título do
ensaio “Recordações do bunker dos mortos”, que faz referência a um dos romances
de Dostoiévski. Ao falar sobre o Bunker 32 em Moscou, Flávio Vassoler cria uma
bela imagem ao compará-lo com o prédio onde mora: “Para se chegar ao bunker propriamente dito, cuja
construção se estendeu por seis anos (1950-56), é preciso descer dezesseis
andares (65 metros). Como, em São Paulo, eu moro, precisamente, no 16º andar,
imagino o King Kong arrancando meu prédio do solo pela raiz e o enterrando, em
pé e de ponta-cabeça, até que eu abrisse a porta do meu apartamento e deparasse
com o lúgubre corredor de acesso ao bunker, junto a cuja entrada postava-se um
oficial do KGB para verificar, minuciosa e temerariamente, a procedência de
todos e cada um dos funcionários ultrassecretos.” Só aqui dá para se perceber o
potencial dos demais textos.
Entram
em campo relatos de sobreviventes de guerra, snipers (aqui na comovente história do atirador que entrega uma
recordação para a esposa de uma de suas vítimas), fatos da história russa,
anedotas sobre seus principais governantes (Stálin com maior destaque, é
claro), a religiosidade, o folclore, os escritores e suas histórias tão
espetaculares quanto sua ficção ou sua poesia (eu desconhecia, por exemplo, o
fato de o caixão de Tolstói não ter sido enterrado, apenas coberto por uma
relva, “como se o panteísmo do autor ainda estivesse contemplando a natureza”,
numa imagem tão poética quanto os escritos que deixou), questões políticas,
desde os tzares até Vladímir Putin (que apareceu “na TV estatal russa com o
torso nu, para celebrar o batismo de Jesus Cristo no rio Jordão mergulhando nas
águas gélidas do lago Seleiger a -6°C”), fechando com uma imagem linda e
dolorosa, a da orquestra congelada de São Petersburgo, quando sobreviventes do
cerco nazista se reuniram para apresentar pela última vez uma sinfonia: “uma
roda de cadáveres de mãos dadas ao redor de um maestro que morrera em pé,
congelado, enquanto regia o penúltimo acorde de Chostakovitch”.
O
futebol passou ao longe dos textos, salvo em uma crônica. O jogo apitado nas
páginas do livro foi o jogo da vida do homem russo, com muitos vencedores, mas
também muitos perdedores, os
“caminhos e descaminhos da velha Rússia”. No fim das contas, um golaço de Flávio Ricardo Vassoler.
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