A frágil condição humana

 

O leitor acredita no Inferno, com letra maiúscula? No da Bíblia? No inferno de Dante? No Hades da mitologia grega? Acredita que o inferno são os outros, como na peça de Sartre? Crê que o inferno é aqui, como na canção do Lulu Santos? Ou que o inferno está dentro de nossa própria cabeça, como afirmou um personagem de um romance de um escritor desconhecido?

“E para quem segue as regras divinas, o Inferno está em cada esquina”, lê-se no primeiro parágrafo do mais recente romance de Santiago Nazarian, “Fé no Inferno” (Companhia das Letras, 376 páginas). É um trecho do livro que Cláudio, o protagonista, pega na estante da biblioteca de um senhor de mais de 90 anos do qual está cuidando, ou melhor, acompanhando, considerando que o velho, o seu Domingos, na verdade não necessita de cuidados. A profissão de Cláudio é cuidador de idosos. É um jovem de 22 anos morando com o namorado 20 anos mais velho, pois recebe um baixo salário e não pode pagar um aluguel, gosta de games e por causa da bateria do aparelho de jogo que está acabando, atende à sugestão do patrão: “... é só um livro, Cláudio. Leia. Talvez você ache interessante”.

Não é, porém, só um livro, como aos poucos o agora leitor Cláudio vai descobrindo. Tratam-se de histórias narradas por um sobrevivente do genocídio na Armênia em 1915. No início, é um menino que escapa com o irmão mais velho (reparem que sempre há alguém mais velho no romance, de certa forma representando a figura do pai ausente ou a autoridade, inclusive o protagonista tem um irmão mais velho, que será peça importante no enredo) de uma das matanças e passam fome enquanto escapam dos turcos. Depois a narrativa segue o caminho do realismo mágico, do fantástico, do absurdo, inclusive com elementos estranhos à segunda década do século XX, o que nos faz questionar quem a escreveu. Por outro lado, há semelhanças entre a própria vida de Cláudio e a do garoto armênio (“... a mesma história contada de diversas maneiras”). Sua casa no morro, junto com tantas outras, também foi queimada, seu pai morto, dessa feita por policiais. O Inferno, segundo sua mãe, merecido pelos seus pecados. Além disso, o menino era perseguido por ser de outra etnia e Cláudio sofria preconceito por ser descendente de índios e homossexual.

Por falar em mãe, algumas figuras femininas são masculinizadas, às vezes parecendo apagadas ou com certa autoridade que incomoda os protagonistas, tanto o do presente como o do passado: além da mãe evangélica de Cláudio, há as empregadas do seu Domingos e sua sobrinha-neta, Beatriz (nome não escolhido por acaso, assim como de um enfermeiro também contratado para cuidar do velho, Virgílio); uma psicóloga que lembra muitos negacionistas para quem tudo é “mimimi”; a viúva que se passa por homem e come criancinhas durante a guerra; a “Diadorim” armênia que se veste de menino para sobreviver; só para citar algumas que aparecem e desaparecem nas duas histórias narradas.

Os capítulos são curtos, ora abordando o tempo atual, ora voltando para o passado, do Brasil para a Armênia, de Cláudio e seu Domingos para o menino sobrevivente, numa linguagem bem trabalhada, uma narrativa que flui leve, apesar dos temas pesados. Se o escritor buscou esse efeito estético, conseguiu com maestria.

Há pouco tempo, meu avô faleceu aos 91 anos e, nos seus últimos dias, alguns dos quais passei com ele no hospital, presenciei as enfermeiras trocando suas fraldas, limpando suas partes íntimas, machucadas devido a assaduras, e ele apenas chorava, não podendo se expressar de outra forma devido ao AVC que o vitimou. O romance de Nazarin me transportou para esses dias tristes e me fez refletir sobre a fragilidade humana, que é física nas duas pontas (criança e velho) e psicológica no meio. Somos seres frágeis em um mundo absurdo, este mundo que talvez seja o verdadeiro Inferno.


Comentários

Octavio Perelló disse…
Parabéns pela resenha! É um livraço! Dos mais importantes romances nacionais lançado em 2020!
Cassionei Petry disse…
Obrigado pela leitura da resenha.

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