Entrevista com o impostor E. Vila-Matas

 


por Cassionei Niches Petry

 Depois de muitos anos sofrendo do mal de Montano, visto que sempre li e escrevi muito, sofro agora da síndrome de Bartleby, pois deixei de escrever ficção e resenhas literárias, as quais, vá lá, tinham certo número de leitores. Sete, quem sabe, a conta do mentiroso. Pois de mentiras e imposturas, vamos vivendo ou sobrevivendo. Como não queria deixar passar em branco a reedição em “terra brasilis” do livro de Enrique Vila-Matas que trata da doença dos escritores que, por uma pulsão negativa, preferem não mais escrever, optei por realizar uma entrevista com o escritor, apesar de eu não ser jornalista. O próprio Vila-Matas fez muitas entrevistas no início de sua carreira, muitas delas, confessa, inventadas (seria esta uma entrevista à moda Vila-Matas?). Entrei em contato com ele por e-mail e prontamente fui atendido. Pediu que enviasse as perguntas e as responderia por escrito, afinal não está sofrendo da síndrome que criou. Embora Vila-Matas tenha como um de seus temas a impostura, sendo que um de seus romances leva esse título, acredito que foi o próprio que me respondeu, assim como, inocente, um professor de literatura acreditou que o recluso Thomas Pynchon tenha atendido seu pedido de entrevista, episódio narrado em Bartleby e companhia.

CNP: Preferiria não fazer a primeira pergunta sobre Bartleby e companhia, que a Editora Companhia das Letras está reeditando.

EVM: Preferiria não respondê-la também.

CNP: Muitas vezes o senhor assina seu nome de forma abreviada, E. Vila-Matas. Ao contrário, lê-se “Satam Alive” e as quatro primeiras letras formam a palavra “Evil”. Como Fausto, o senhor fez um pacto com algum demônio para escrever e obter sucesso?

EVM:  Poderia responder que sou o próprio demônio ou um deles, porém soaria com uma de minhas tantas imposturas. Diria que ele está sempre sobre minha corcunda ditando textos, porém consigo enganá-lo, assim como engano os leitores e entrevistadores. Quanto ao sucesso, não o tenho. Sou, ao contrário do que pensam, um escritor oculto, não de culto.

 CNP: O suposto nome do narrador, Marcelo, é citado somente uma vez em todo o romance, num diálogo com María Lima Mendes, por sinal, uma escritora fictícia, uma das tantas invenções no inventário de escritores do Não. O velho, solteiro, corcunda e calvo personagem tem realmente esse nome ou é mais uma pista falsa do livro, uma “pegadinha” como se diz por aqui?

EVM: Marcelo significa “pequeno guerreiro”, vem da mesma raiz de nomes como Márcio e Marcos, vem do deus Marte, deus da guerra na mitologia romana, por isso relacionado ao sangue. Não à toa deram o nome de Marte ao “planeta vermelho”, que recentemente recebeu uma visita aqui da Terra.  Mas acho que isso não responde à pergunta. Como escreveu Blanchot, “a resposta é a infelicidade da pergunta”.

CNP: Em um dos capítulos, o senhor menciona um escritor português, Manuel Torga. A tradução da edição brasileira corrige para Miguel Torga. Errou o escritor ou erraram os tradutores? Manuel Torga é mais uma de suas criações?

EVM: Desconheço essa correção, não me lembro de ter sido consultado. Confesso, também, que não lembro o que escrevi. Entra, então, para as pistas falsas do romance. Seria Manuel Torga um escritor real ou inventado? Os tradutores são traidores ou coautores da obra?


CNP: Quando Bartleby e companhia foi escrito, no final do século passado, a internet ainda era um bebê de colo. Reeditado vinte anos depois, é uma obra que deve ser lida consultando se os autores realmente existem, assim como os livros mencionados e também se as citações são verdadeiras? Ou o leitor aproveita melhor o romance sem buscar essas informações?

EVM: Respondo a essa pergunta com uma citação do livro: “os escritores do Não deixaram de escrever porque há muita informação no mundo. A informação mata a literatura”. Sem trocadilho com o meu nome, por favor.

CNP: No Brasil, há muitos mais escritores do que leitores. A síndrome de Bartleby não é mais um bem do que um mal?

EVM: A pulsão negativa tem sim seu lado positivo. Paulo Coelho, por exemplo, foi quem mais fez danos à literatura e não Joyce, como ele afirmou. O que não significa que seus livros devam ser queimados, como fizeram algumas pessoas aí no Brasil, ainda mais que o motivo são suas posições políticas.

CNP: Romance (“novela”, em espanhol), ensaio, diário, notas de rodapé, relatos. Todos esses rótulos se encaixam na obra, mas acredito que a escolha por romance reivindica o caráter híbrido desse gênero, que pode abarcar todos os tipos de textos. O senhor é mestre nisso. Não é uma pergunta, é uma afirmação.

EVM: Obrigado, porém discordo do elogio. Ele me envaidece. E não há nada mais perigoso que um escritor envaidecido. É seu pior defeito. Assim como o convencimento, são sentimentos que deveriam ser abolidos da literatura. Humildade faz bem. Só não me declaro ser humildade porque isso também é falta de humildade.

CNP: “O que mais admiro nele é que foi um grande impostor”, escreve seu personagem, o escritor do Não Robert Deraim, sobre Marcel Duchamp (Marcel, Marcelo, hummmm). Quanto de impostura há no romance? E nas respostas desta entrevista?

EVM: No romance, 100%. Nesta entrevista também. Acho que de ambas as partes.

CNP: Depois de 20 anos, Bartleby e companhia poderia ter novos acréscimos, quem sabe um segundo livro, Bartleby e outras companhias (com o perdão da audácia). O nossa Raduan Nassar, por exemplo, seria um bom personagem. O senhor já pensou na possibilidade?

EVM: Se há algo em que penso a todo o momento são nas possibilidades. A literatura é a busca do possível, não há o impossível na literatura. Quanto a um segundo Bartleby e companhia, prefiro não escrever.

(Cassionei Niches Petry é professor de Literatura. Criou o blog “Uma biblioteca na cabeça” e escreveu, entre outras obras, os romances Relatos póstumos de um suicida e Os óculos de Paula.)


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