O último suspiro do poeta

 

por Cassionei Niches Petry


“Escrever é escalar/ através do que vai surgindo/ e crescendo pedra por pedra”, diz os primeiros versos do poema “Luta letrada”, do último livro de Armando Freitas Filho, Respiro (Companhia das Letras, 166 páginas), que venceu o Prêmio Jabuti em sua categoria este ano. Como leitor do poeta, que morreu no ano passado, também fui escalando, degrau por degrau, sua produção poética, boa parte metalinguística, desde sua primeira coletânea, Palavra, de 1963. 

Neste Respiro, seu último suspiro, as temáticas e o fazer poético das outras obras se repetem. Poemas curtos, às vezes prosaicos, mas sem deixar de lado as imagens metafóricas que ressoam por muito tempo no leitor, em versos que abusam do recurso do enjambement. Publicado poucos meses depois de sua morte, o livro é um testamento, escrito do próprio punho, “à mão livre”, para lembrar o título de outro livro seu (“O lápis já perto/ de virar um toco./ A bic vai falhando/ o traço da sua letra.”). Deixa ao leitor aquilo que tinha de mais valor, seus versos lapidares, para usar de um lugar-comum. “Escrever é ler em outra forma/ o que já foi escrito antes.”

A poesia de Armando Freitas Filho é, como a de João Cabral de Melo Neto, dura como pedra. As pedras, presentes já no primeiro poema, aparecem no decorrer da obra: “Sísifo não tem descanso./ A pedra de mármore não para/ sobe e baixa, não chega/ ao cume da montanha e ele/ volta a empurrá- la para cima/ assim sucessivamente para sempre./ A pedra no caminho de Drummond/ é oposta — não rola nem se move.” Também no poema 223, e em alguns outros da seção “Numeral”, que dá continuidade a uma série de poemas numerados que vinha desenvolvendo nos livros anteriores, fala da pedra: “Ler é quebrar pedra/ do que foi escrito/ para ver o que a compõe.” Em outro, diz: “Nada é mais nua/ do que a pedra./ Física ou quando/ o amor empedra/ e para por desgosto.”

Um dos temas é a morte, que se aproximava do poeta: “Não morrerei mais sobre aquelas /quatro pernas imóveis”, diz nos versos de “In memorian”, as pernas são as da cama, diga-se, “quase carro ou caixão”. No último poema, escreveu: “Não quero que a morte/ me mate; antes, quero matar/ a morte. Quero escolher/ o modo de morrer: bala/ faca, veneno, carro, assalto/ quero o salto no vazio”. Quis o destino que Armando Freitas Filho viesse morrer em decorrência de complicações da peste que nos assolou nos últimos anos.


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