Meu ensaio no livro "Um rio de memórias"
Livro "Um rio de memórias". Entre vários bons textos, um mais ou menos deste escriba. Editado pela Editora Bestiário em parceria com a Editora Gazeta.
Ensaio sobre… sobre o que mesmo?
Cassionei Niches Petry*
Coincidentemente, começo a pensar em escrever, numa manhã de setembro, um ensaio sobre a memória (só falta rodar a música da Vanusa no rádio!), depois de iniciar a leitura do romance Memória de setembro, de Ricardo Ramos (filho do Graciliano, o autor de Memórias do cárcere, Infância… e não é que no rádio começa a tocar agora “Velha infância”, dos Tribalistas?). Pretendo submeter o texto à publicação de uma coletânea sobre memória e literatura. Penso em possíveis abordagens: preservação da memória coletiva a partir do texto literário? Recordações pessoais de personagens reais ou fictícios? A memória no sentido cognitivo?
“Tempo perdido”, da Legião Urbana, roda neste momento na rádio. Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, é um belo exemplo de memória na literatura, mas é um livro já bastante comentado, assim como o conto de Jorges Luis Borges, “Funes, o memorioso”, também é um clichê sobre o tema. Busco outro foco, ensaio possibilidades, continuo pensando enquanto os dedos percorrem o teclado (seria mais bonito se escrevesse “enquanto a pena escorre no papel”, porém…). O prazo é o fim do mês para a entrega do ensaio. Creio que dá tempo.
A música é minha madeleine e estou em busca de um ensaio perdido. Vou à minha coleção de CD’s. Minha biblioteca também guarda a memória musical além da literária. Em um disco de Paulinho da Viola, “Memórias cantando”, ouço “Coisas do mundo, minha nega”: “As coisas estão no mundo / Só que eu preciso aprender”. Um ensaio é para isso, para aprender, tanto para quem escreve, quanto para quem lê. Aprendo com os livros que leio e releio. Mais releio do que leio, pois minha memória não é boa. Os livros guardam a memória e nos fazem lembrar. Lembro que preciso escrever algo.
Na minha biblioteca, onde, já disse, guardo a memória literária, deparo-me com o volume de crônicas Contra o esquecimento, de Luís Augusto Fischer. Lembro que enfrentei uma entrevista com ele e outros mestres e doutores para tentar ingressar no Mestrado em Letras da UFRGS. Minhas respostas foram um fracasso, portanto tenho uma triste lembrança desse momento. Apesar disso, Fischer foi meu professor, mesmo sem ele saber, através dos seus textos. Se ele escreveu e publicou contra o esquecimento, por outro lado eu escrevo para não esquecer, mas esqueço o que escrevi. Sou um fracasso como aluno também.
Ainda estou em busca do ensaio perdido. Em que desvão da minha memória posso encontrá-lo? Em que lugar do mundo posso achá-lo. “Quem acha vive se perdendo”, canta João Nogueira, em “Feitio de oração”, composição do Noel Rosa. Este ateu que tenta escrever um ensaio não recorda de outra oração que o toque tão profundamente. Acho que…, quer dizer, tenho certeza de que preciso me encontrar. Escrevo para isso.
De um professor, que acabou não sendo, a uma professora que marcou minha memória. Alba Olmi foi fundamental na minha formação. Inclusive foi em uma aula dela, na graduação em Letras, que escrevi um conto sobre o fatídico 11 de setembro em Nova Iorque, data que se rememora nos próximos dias. Foi no calor da hora, em 2001. Publicado anos depois no meu primeiro livro, Arranhões e outras feridas, o conto “O dia em que a Terra parou” (cujo título foi inspirado na música do Raul Seixas, não no filme) guarda uma memória coletiva (não pessoal, pois o que acontece com o personagem não aconteceu comigo). Pois a professora, de saudosa memória, escreveu um livro que poderia ser fundamental para este ensaio que ainda não existe. Em Memória e memórias: dimensões e perspectivas da literatura memorialista, Alba Olmi aborda livros de memórias, literatura de testemunho e diários. Mas não, não é bem sobre isso que gostaria de escrever no momento.
Quase memória, Matéria de memória, Ladeira da memória, Memórias póstumas de Brás Cubas, Memórias de Lázaro, Memórias inventadas, Memórias de Adriano, Memorial de Aires, Memorial de Maria Moura, Memorial do convento, Memorial de Santa Cruz, Invenção e memória, Memórias sentimentais de João Miramar, Recordações do escrivão Isaías Caminha, O livro do riso e do esquecimento, Memória de elefante, Memória no esquecimento, Um castelo no pampa: pedra da memória, Caçador de memórias, maisquememória, títulos de ficção ou poesia nos quais caem o meus olhos ao contemplar minha biblioteca. Ainda há os diários (Subsidiário, de Herberto Sales), as autobiografias (Os fatos: autobiografia de um romancista, de Philip Roth), os livros de memória propriamente ditos (Memórias de uma moça bem comportada, de Simone de Beauvoir), que registram a memória individual e às vezes a coletiva. Material não falta para um ensaio sobre o tema, porém falta o caminho, a veia, a vereda a seguir. O prazo para enviar o texto aperta.
Dia 11 de novembro chega e o ensaio não engrena. Os ministros do STF (parte deles) se tornam os arautos da memória ao condenar à prisão os autores de uma tentativa de golpe, todos militares e um ex-presidente, lembrando tudo que o Brasil passou por causa de ditaduras passadas e para que não passemos por isso de novo. O 11 de setembro também guarda a memória da morte de Salvador Allende, no Chile, em 1973, num golpe de estado que pôs Pinochet no poder. Data emblemática na história. Que livros serão escritos sobre o julgamento no futuro? Que lado da história vencerá e que memória será perpetuada?
A personificação da memória na mitologia grega é Mnemósine ou Mnemosina, mãe das Nove Musas, que inspiram os artistas, mas não inspiram este escriba para escrever seu ensaio. Já é dia 13, o prazo é dia 20, dia em que se comemora a Revolução Farroupilha. Por mais que tenha sido uma guerra perdida, os gaúchos a guardam na memória. A literatura sul-riograndense tem livros que ajudam na manutenção dessa memória, às vezes se inventa uma memória através da ficção. O tempo e o vento, de Erico Verissimo, A prole do corvo, de Luiz Antonio de Assis Brasil, Os varões assinalados, de Tabajara Ruas. Mas não, não me interessa essa perspectiva para um ensaio.
Um filme que sempre me fez pensar sobre a memória se chama Violação de privacidade, cuja história se passa em um futuro não muito distante em que as pessoas têm implantado em seu cérebro um chip que grava sua vida a partir dos primeiros minutos de vida. Quando morrem, essa memória é acessada e editada para ser exibida num memorial para o morto. Um editor de memórias, interpretado por Robin Williams, que, por óbvio, não poderia ter o chip, já que tem a função de visualizar várias memórias, muitas vezes comprometedoras, descobre que foi implantado um na sua mente, mas seus pais morreram antes de revelar o fato a ele. Traumatizado por uma recordação da infância, resolve acessar as gravações. A surpresa é que as imagens se mostraram bem distintas do que lembrava.
Tenho algumas recordações bem remotas, de quando tinha 3 anos de idade. Sei da idade precisa porque essas lembranças são de uma casa em que minha família morou na época, já que nos mudamos quando minha irmã nasceu. Pergunto-me frequentemente se realmente aconteceram tais recordações. Assistir ao filme me fez aumentar ainda mais as dúvidas. A arte nos faz questionar nossas certezas. Seria um foco interessante para o ensaio, mas não me lembro de nenhuma obra literária sobre essa perspectiva da memória.
Penso em jogar a toalha, clichê para “eu desisto”. O ensaio não vai sair. Não encontrei o tom, o foco, a perspectiva. A pena, ou melhor, o teclado não está afiado. Há muito o que se falar sobre a memória e por isso não sei nada sobre o que falar sobre ela. Volto às questões iniciais: preservação da memória coletiva a partir do texto literário? Recordações pessoais de personagens reais ou fictícios? A memória no sentido cognitivo?
Este texto acaba se tornando um ensaio-oroboro. De certa forma, pode-se dizer que o ensaio saiu, embora o tema fosse apenas tangenciado. Ensaiei um ensaio, digamos, e o ensaio nasceu. A areia da ampulheta já escorreu na sua totalidade e vou enviar o texto assim mesmo. Se o leitor o está lendo, é sinal de que não fracassei. Pelo menos dessa vez.



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