Dois inimigos, duas crônicas
Luis Fernando Verissimo e Juremir Machado da Silva, inimigos públicos juramentados, disputam quem escreve a melhor crônica de hoje. O primeiro escreve sobre a falta de assunto, o segundo se compara a Paul Auster. Boa leitura.
LVF - O mestre
JMS - Paul Auster e eu
Paul Auster viveu em Paris. Eu também. Ele tinha pouco dinheiro. Eu também. Auster traduziu grandes escritores franceses. Eu também. Por exemplo, Charles Baudelaire. Auster é poeta. Eu também (um dia vocês conhecerão meus poemas). Espero que não tomem isso como uma ameaça. Auster tem a sua trilogia de Nova Iorque. Eu tenho a minha trilogia de Palomas: "Cai a Noite Sobre Palomas", "Fronteiras" e "Viagem ao Extremo Sul da Solidão". São três romances esgotados. Tratam da vida de um menino, de um jovem e de um homem. O menino e o jovem viram a ditadura em Palomas. O homem saiu pelo mundo em busca da liberdade. Um vive dentro do outro. Palomas está no mundo. O mundo está em Palomas. A parte está no todo, que está na parte. Paloma é um holograma do imaginário.
O mundo de Auster tem o seu centro em Nova Iorque, no Brooklyn. O meu centro está em Palomas. Brasília não tem esquinas. Palomas não tem bairros. Em "Cai a Noite Sobre Palomas", o menino descobre a violência, o sexo, a beleza e a traição. Em "Fronteiras", o jovem conhece a tortura, a utopia e uma identidade chamada pampa. Em "Viagem ao Extremo Sul da Solidão", o homem, sempre jovem, eterno menino, mergulha na depressão. Sempre sou obrigado a dizer coisas inteligentes sobre meus livros que os resenhistas esqueceram de anotar. "Fronteiras" é um livro cru. Alguns personagens são gaudérios. "Cai a Noite Sobre Palomas" é um livro experimental. O personagem sonha, pensa e deslumbra-se com as palavras. "Viagem ao Extremo Sul da Solidão" é um livro melancólico. O personagem sabe que perdeu. Tenta desesperadamente suportar a derrota.
Não consigo viver bem sabendo que vocês estão privados da leitura dessa trilogia palomense. O mundo não pode viver sem a Macondo de Gabriel García Márquez. Nem sem a minha Palomas. Vou pedir ao Correio do Povo e à Editora Sulina que se unam para fazer uma promoção de relançamento de "Cai a Noite Sobre Palomas", "Fronteiras" e "Viagem ao Extremo Sul da Solidão". Não farei esse pedido por vaidade nem por interesse financeiro. Isso jamais passaria pela minha cabeça. Farei por idealismo e no interesse de vocês. Proporei a edição de mil coleções da Trilogia de Palomas. Vocês terão uma tarde para comprar tudo. Os mil primeiros se darão bem. Tudo o que tiver sobrado ao final dessa tarde, eu mesmo comprarei. E queimarei. Não me digam que não tiveram uma oportunidade. Dependendo do número de coleções que eu tiver de comprar, queimarei junto com meus livros. Deixarei pronto o meu epitáfio para evitar que o principal seja esquecido. Terá um título muito original: "A Fogueira da Vaidade".
Eu penso em tudo. Sou obrigado. Paul Auster morou num "studio" em Paris. Eu também. O meu tinha 18 metros quadrados e era todo roxo, inclusive o teto. Auster escreveu em Paris. Eu também. Uma cigana, em Montmartre, disse que ele seria um grande escritor. Uma cigana me disse, em Saint-Germain-des-Prés, que eu arderia com meus livros. Não explicou se seria na glória ou no fogo do inferno. Tudo vai depender de vocês. E não venham me dizer que estou fazendo chantagem. Isso é o mínimo.
Eu precisava escrever esta crônica. Tinha pouco tempo e nenhuma ideia. Fazer o quê? Fui procurar o Mestre. Expliquei minha situação. Ele sorriu, paternalmente. O velho problema de sempre. A aflição de todo cronista. Pouco tempo e nenhuma ideia.
– Escreva sobre isso – sugeriu ele, agora com um sorriso irônico. – Sobre a aflição. Sobre o que sente um cronista sem tempo e sem ideias, obrigado a cumprir um prazo.
– Mas, Mestre, isso é o que tem feito todos os cronistas desde os tempos bíblicos. Na falta de assunto, escrever sobre a falta de assunto. Não é novidade.
– Ainda bem que você reconhece – disse ele. – Esse truque não funciona mais. Vamos às alternativas. Que tipo de crônica você quer fazer?
– Bem...
– Séria? Humorística? Opiniática? Lirica? Profunda? Frívola?
– Humorística.
– Que tipo de humor?
– Quantos tipos há?
– Tem o humor fácil, sem um objetivo maior, e que sempre funciona. Um homem escorregando numa casca de banana, por exemplo. O homem escorrega numa casca de banana e cai. Não é uma crônica, mas é um começo. E engraçado.
– E o que acontece depois?
– Aí depende. O tombo pode significar apenas um tombo. Ou a casca de banana pode simbolizar o destino, o homem que cai pode simbolizar a humanidade diante do seu destino e da fatalidade biológica da morte, e toda a crônica pode ser sobre a condição humana e o nosso desespero sem saída.
– E onde fica o humor?
– No final a gente bota uma piada.
– Sei não. Casca de banana...
– Você quer uma coisa mais refinada? Escreva diálogos sofisticados. Os diálogos têm uma grande vantagem.
– Qual é?
– Qual é o quê?
– Qual é a vantagem de diálogos?
– É que enchem mais espaço. O leitor pode ter dificuldade em identificar quem está falando, mas o cronista sem tempo realiza seu objetivo principal, que é chegar ao fim da crônica o mais rapidamente possível.
– Esses diálogos sofisticados...
– São fáceis de fazer. Ao contrário da casca de banana, não precisam provocar gargalhadas, apenas sorrisos. Experimente. Comece um dialogo sofisticado.
– Hmmm. Deixa ver. Homem chega em casa e pede para a mulher: “Prepara um drinque para mim e um banho quente para nós dois”. Mulher diz: “Acho que você já tomou drinques demais”. Homem: “Por que você diz isso, querida?”. Mulher: “Porque esta não é a sua casa e eu não sou a sua mulher”. Homem: “O banho quente, então, nem pensar?”.
– Acho melhor esquecer o humor.
– Sobre o que eu devo escrever, então?
– Tenta algo profundo. A alma. O pré-sal.
– Não tenho tempo!
– Então escreve qualquer bobagem, mas com uma epígrafe do Shakespeare ou do Nietzsche. Qualquer coisa fica séria com uma boa epígrafe.
– Você acha?
– Vamos fazer o seguinte. Inventa um Mestre a quem você pede ajuda. Ele tenta ajudar, e o diálogo de vocês é a crônica. Pronto.
– Mas isso também é um truque!
– E daí? Funcionou. Chegamos ao fim.
– Você não tem mais nada para dizer?
– Tenho. Tiau.
***– Escreva sobre isso – sugeriu ele, agora com um sorriso irônico. – Sobre a aflição. Sobre o que sente um cronista sem tempo e sem ideias, obrigado a cumprir um prazo.
– Mas, Mestre, isso é o que tem feito todos os cronistas desde os tempos bíblicos. Na falta de assunto, escrever sobre a falta de assunto. Não é novidade.
– Ainda bem que você reconhece – disse ele. – Esse truque não funciona mais. Vamos às alternativas. Que tipo de crônica você quer fazer?
– Bem...
– Séria? Humorística? Opiniática? Lirica? Profunda? Frívola?
– Humorística.
– Que tipo de humor?
– Quantos tipos há?
– Tem o humor fácil, sem um objetivo maior, e que sempre funciona. Um homem escorregando numa casca de banana, por exemplo. O homem escorrega numa casca de banana e cai. Não é uma crônica, mas é um começo. E engraçado.
– E o que acontece depois?
– Aí depende. O tombo pode significar apenas um tombo. Ou a casca de banana pode simbolizar o destino, o homem que cai pode simbolizar a humanidade diante do seu destino e da fatalidade biológica da morte, e toda a crônica pode ser sobre a condição humana e o nosso desespero sem saída.
– E onde fica o humor?
– No final a gente bota uma piada.
– Sei não. Casca de banana...
– Você quer uma coisa mais refinada? Escreva diálogos sofisticados. Os diálogos têm uma grande vantagem.
– Qual é?
– Qual é o quê?
– Qual é a vantagem de diálogos?
– É que enchem mais espaço. O leitor pode ter dificuldade em identificar quem está falando, mas o cronista sem tempo realiza seu objetivo principal, que é chegar ao fim da crônica o mais rapidamente possível.
– Esses diálogos sofisticados...
– São fáceis de fazer. Ao contrário da casca de banana, não precisam provocar gargalhadas, apenas sorrisos. Experimente. Comece um dialogo sofisticado.
– Hmmm. Deixa ver. Homem chega em casa e pede para a mulher: “Prepara um drinque para mim e um banho quente para nós dois”. Mulher diz: “Acho que você já tomou drinques demais”. Homem: “Por que você diz isso, querida?”. Mulher: “Porque esta não é a sua casa e eu não sou a sua mulher”. Homem: “O banho quente, então, nem pensar?”.
– Acho melhor esquecer o humor.
– Sobre o que eu devo escrever, então?
– Tenta algo profundo. A alma. O pré-sal.
– Não tenho tempo!
– Então escreve qualquer bobagem, mas com uma epígrafe do Shakespeare ou do Nietzsche. Qualquer coisa fica séria com uma boa epígrafe.
– Você acha?
– Vamos fazer o seguinte. Inventa um Mestre a quem você pede ajuda. Ele tenta ajudar, e o diálogo de vocês é a crônica. Pronto.
– Mas isso também é um truque!
– E daí? Funcionou. Chegamos ao fim.
– Você não tem mais nada para dizer?
– Tenho. Tiau.
JMS - Paul Auster e eu
Paul Auster viveu em Paris. Eu também. Ele tinha pouco dinheiro. Eu também. Auster traduziu grandes escritores franceses. Eu também. Por exemplo, Charles Baudelaire. Auster é poeta. Eu também (um dia vocês conhecerão meus poemas). Espero que não tomem isso como uma ameaça. Auster tem a sua trilogia de Nova Iorque. Eu tenho a minha trilogia de Palomas: "Cai a Noite Sobre Palomas", "Fronteiras" e "Viagem ao Extremo Sul da Solidão". São três romances esgotados. Tratam da vida de um menino, de um jovem e de um homem. O menino e o jovem viram a ditadura em Palomas. O homem saiu pelo mundo em busca da liberdade. Um vive dentro do outro. Palomas está no mundo. O mundo está em Palomas. A parte está no todo, que está na parte. Paloma é um holograma do imaginário.
O mundo de Auster tem o seu centro em Nova Iorque, no Brooklyn. O meu centro está em Palomas. Brasília não tem esquinas. Palomas não tem bairros. Em "Cai a Noite Sobre Palomas", o menino descobre a violência, o sexo, a beleza e a traição. Em "Fronteiras", o jovem conhece a tortura, a utopia e uma identidade chamada pampa. Em "Viagem ao Extremo Sul da Solidão", o homem, sempre jovem, eterno menino, mergulha na depressão. Sempre sou obrigado a dizer coisas inteligentes sobre meus livros que os resenhistas esqueceram de anotar. "Fronteiras" é um livro cru. Alguns personagens são gaudérios. "Cai a Noite Sobre Palomas" é um livro experimental. O personagem sonha, pensa e deslumbra-se com as palavras. "Viagem ao Extremo Sul da Solidão" é um livro melancólico. O personagem sabe que perdeu. Tenta desesperadamente suportar a derrota.
Não consigo viver bem sabendo que vocês estão privados da leitura dessa trilogia palomense. O mundo não pode viver sem a Macondo de Gabriel García Márquez. Nem sem a minha Palomas. Vou pedir ao Correio do Povo e à Editora Sulina que se unam para fazer uma promoção de relançamento de "Cai a Noite Sobre Palomas", "Fronteiras" e "Viagem ao Extremo Sul da Solidão". Não farei esse pedido por vaidade nem por interesse financeiro. Isso jamais passaria pela minha cabeça. Farei por idealismo e no interesse de vocês. Proporei a edição de mil coleções da Trilogia de Palomas. Vocês terão uma tarde para comprar tudo. Os mil primeiros se darão bem. Tudo o que tiver sobrado ao final dessa tarde, eu mesmo comprarei. E queimarei. Não me digam que não tiveram uma oportunidade. Dependendo do número de coleções que eu tiver de comprar, queimarei junto com meus livros. Deixarei pronto o meu epitáfio para evitar que o principal seja esquecido. Terá um título muito original: "A Fogueira da Vaidade".
Eu penso em tudo. Sou obrigado. Paul Auster morou num "studio" em Paris. Eu também. O meu tinha 18 metros quadrados e era todo roxo, inclusive o teto. Auster escreveu em Paris. Eu também. Uma cigana, em Montmartre, disse que ele seria um grande escritor. Uma cigana me disse, em Saint-Germain-des-Prés, que eu arderia com meus livros. Não explicou se seria na glória ou no fogo do inferno. Tudo vai depender de vocês. E não venham me dizer que estou fazendo chantagem. Isso é o mínimo.
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