No Traçando Livros de hoje
Traçando livros de hoje, minha coluna no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix. http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/398930-o_legado_da_nossa_miseria/edicao:2013-03-27.html
O legado da nossa
miséria
No filme O olho do diabo, de Ingmar Bergman, um
pastor de uma igreja revela a um visitante – o famoso Dom Juan que volta do
inferno para uma missão imposta pelo Príncipe das Trevas –, que gostaria de ter
um demônio no armário, para que lhe contasse tudo o que desejasse saber. Mais
tarde, consegue prender um. Isso nos lembra que todos temos monstros guardados
nos nossos armários. Muitas vezes, no entanto, eles fogem, pois não podemos
escondê-los por muito tempo, tampouco contam coisas que desejamos saber.
Com essa premissa,
Flávio Torres escreve seu primeiro livro de contos, Monstros fora do armário (Não Editora, 93 páginas). Aqui eles não
estão escondidos, bem pelo contrário. São as questões humanas que fazem questão
de se mostrar e revelam nossos problemas mais íntimos.
A obra é dividida em
três partes, “Concepção”, “Gestação” e “Legado”. A primeira traz apenas um
conto, uma espécie de prólogo, trazendo a história de uma mulher que se
encontra com homens em motéis sem saber o nome deles, apenas com o desejo de
ficar grávida. Vivendo sozinha, visita o túmulo da família (pai, mãe e irmã) no
cemitério e lhes conta que logo ela terá a companhia de uma filha. As marcas no
corpo e os vômitos, porém, além do envelopes de diferentes médicos que esperam
ser abertos, revelam que seu corpo está gerando algo bem diferente.
“Gestação”, por sua
vez, é composta por nove contos, representando, logicamente, os nove meses de
gravidez. Eles não recebem títulos, assim como as personagens são anônimas,
geralmente chamadas apenas por “guri”. Em “Primeiro”, um menino de rua encontra
no chão um papel com nome e endereço de uma prostituta. Vai à procura dela,
desejando que fosse sua mãe, e a encontra em um lugar feio e sujo. Ela o
acolhe: “há muito tempo não tenho um filho”. O menino pensa: “mesmo estranha e
diferente daquela com que sonhava, merecia a palavra mãe”.
O conto “Segundo”
traz a figura do pai, no caso um pai bêbado e violento que obriga o filho a
fazer coisas indesejáveis, como fazer sexo com uma ovelha na frente dos adultos
igualmente alcoolizados. Gesta-se, neste momento, a cultura da barbárie na
mente de um inocente guri. Já em “Quarto”, o pai vegetariano, aparentemente
compreensivo, faz para seu filho um bife, cuja origem é melhor não mencionar.
“O filho merecia a melhor carne da cidade.”
O conjunto de contos
se encerra com “Legado”, que, de certa forma, refaz a famosa frase do Brás
Cubas, personagem de Machado de Assis, e resume a temática das histórias. Em
vez de não termos filhos, os temos para lhes deixar como legado a miséria humana.
Transmitimos o vírus da incompreensão, da fraqueza e da dor aos guris que são
jogados nesse mundo repleto de monstros. É um bom livro, mas machuca.
Cassionei
Niches Petry é professor, mestre em Letras e escritor. Publicou Arranhões e outras feridas (Editora Multifoco).
Escreve quinzenalmente para o Mix e mantém um blog: cassionei.blogspot.com.
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