Condenamos e somos condenados
O auto é um tipo de
texto teatral da Idade Média de cunho religioso e moralizante. As virtudes e os
pecados aparecem através das personagens que os representam. O grande escritor
desse gênero foi o português Gil Vicente, com obras como Auto da barca do inferno. No Brasil, é conhecidíssima a peça O auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna.
A cidade, o
inquisidor e os ordinários, de Carlos de Britto e Mello (Companhia das Letras, 470 páginas), é classificado na ficha
catalográfica como ficção e na orelha como romance, mas que se vale de
elementos de um auto. Em vez de narrador, temos a estrutura de uma peça de
teatro, com o nome, ou melhor, o epíteto de cada personagem encabeçando as
falas. Suas vozes é que constroem o enredo que se passa em uma cidade controlada
por um inquisidor, “O Decoroso”, que ajudado por dois irmãos que vivem nos
terraços dos edifícios observando tudo, “O Apregoador” e “O Olheirento”, julga
alguns habitantes a quem chama de bobos, os quais vivem deitados em seus
apartamentos, apáticos, tristes, desanimados, evitando o contato com os demais,
não cumprem com suas obrigações e não trabalham.
Para “O Decoroso”,
segundo a lei que ele mesmo instituiu, isso é um crime perante a comunidade e,
como pena, os bobos são condenados a ficarem pendurados em antenas de televisão,
nos parapeitos de seus apartamentos ou em outro local visível para toda a cidade.
Os habitantes, que a tudo assistem e opinam, são representados belo “Bem
Composto”, que é um alfaiate incumbido de fazer uma toga para “O Decoroso”; “A
Amada”, dona de casa idolatrada pelo marido e filhos porque cumpre seus deveres
como esposa; “A Quituteira”, “As Vizinhas” e os “Os Andarilhos”, gente comum
que acompanha os acontecimentos; e “A Impostora”, mulher misteriosa e peça
fundamental no enredo.
Como uma sombra
sobre eles, há o “Destinatário”, a quem as pessoas destinam suas orações. É a
figura de Deus ou o Altíssimo que sofre críticas do “Decoroso” por ter
abandonado a todos: “Se o Destinatário fosse ainda como foi durante eras e mais
eras, imperioso e punitivo, eu não precisaria estar aqui hoje, servindo de
corretor das almas perdidas. As multidões insistem em louvá-Lo pelos Seus ostentados
feitos, mas esperava-se obra mais bem-acabada do Criador.” Como o
“Destinatário” não aparece, a lei é imposta pelo “Decoroso”. Os ordinários,
como são chamados os cidadãos comuns, apenas aceitam cumpri-la.
Carlos de Britto e
Mello, nesse seu segundo romance, escreve um texto que parece absurdo, mas que
realisticamente nos retrata. Bisbilhotamos a vida alheia, julgamos suas
atitudes e condenamos os réus à exposição em redes sociais. Somos inquisidores
dos outros, mas não enxergamos nossos próprios defeitos. Somos os bobos que
aceitam ser condenados. Somos ordinários, assim como quem nos criou (se é que
nos criou) a sua imagem e semelhança: “Não temos por que esperar Dele mais do
que esperamos de nós mesmos.”
Cassionei Niches Petry é
professor, mestre em Letras e escritor. Publicou Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco).
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