No Traçando Livros de hoje
Um pedaço de mim
Há alguns anos, havia uma parte
de mim que estava distante. Fui visitá-la. Tinha saudades dela. Estava desorganizada,
suja. Era triste vê-la naquele estado. Havia muito pó, teias de aranha e pequenos
insetos circulavam sobre ela. Sabíamos, no entanto, que era por pouco tempo
essa separação.
Ao procurá-la, ela me deu o que
precisava. Continuava me satisfazendo, me proporcionando prazer e, mesmo sabendo
que a abandonara por um tempo, não era vingativa. Sabia que não fiz por mal.
Claro que ainda escondia, por pirraça, alguns livros ou revistas, porém era só
revirá-la que lá estava o que procurava, e ela cedia, sem reclamar.
Deixara essa parte de mim quando
mudei de endereço. Não havia lugar para ela, por enquanto, na nova morada. Eram
muitos autores e personagens ocupando diferentes casas e andares. A
superpopulação não cabia ainda no meu pequeno mundo, pelo menos fisicamente.
Tive um dia que buscar alguns
moradores importantes, dos quais precisava para o mestrado que estava cursando.
Divididos em casas, apartamentos, mansões e barracos, seus moradores, em sua
maioria, esperavam ser visitados, enquanto outros batiam a porta na minha cara.
Encontrei uma casa velhinha,
reformada em 1946, mas construída no século XIX. Seu aspecto e o cheiro
denotavam sua antiguidade. Um dos seus moradores, um marido traído, reencontrou
o amante de sua mulher, que morrera anos antes. O construtor dessa casa era um
russo que entendia a condição humana como poucos e que também construiu a casa
de um jogador inveterado que, dizem as más línguas, era um duplo do próprio
russo.
Em outra moradia, na verdade um
conjunto de apartamentos, encontrei alguns moradores estranhos, como um que
vomitava coelhos e outro que se transformava numa espécie de salamandra. Um dos
apartamentos era ocupado por um tigre que circulava em seus cômodos, obrigando
os moradores a avisarem uns aos outros sobre a localização do animal, podendo
assim se movimentarem com segurança pela residência. Em outro apartamento, dois
irmãos tiveram que sair de casa, pois algumas pessoas, não se sabe exatamente
quem, começaram a ocupá-la peça por peça. O arquiteto desse condomínio foi um
argentino grandão, que tinha o curioso passatempo de jogar amarelinha.
Falando em jogo, outro morador,
um menino de 14 anos, se tornou conhecido nas redondezas por ser um craque na
sinuca. O dono da casa onde ele morava, infelizmente, foi um dia encontrado
morto, já em adiantado estado de decomposição em seu apartamento onde morava
sozinho, causando uma comoção geral nos salões de sinuca do subúrbio. Morte
natural, consta no atestado de óbito.
Foram esses moradores que fui
buscar para morar comigo na casa nova, causando ciúmes nos que ficaram. Avisei,
porém, que voltaria para, definitivamente, transportá-los para o novo endereço.
Era questão de esperar, com o que esses moradores estavam acostumados.
Hoje estão todos morando comigo
e, a cada semana, novas casas são construídas e novos habitantes vão chegando.
Que venham mais e mais.
Cassionei Niches Petry é professor, mestre em
Letras e escritor. Publicou Arranhões e outras feridas (Editora
Multifoco). Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog,
cassionei.blogspot.com.
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