Machado de Assis no "Traçando livros" de hoje
“Rabugens de pessimismo”
Cassionei Niches Petry
Apesar de assinar
sempre como escritor esta coluna e outros textos que publico no jornal ou na
internet, não é essa a função que sustenta a minha família. Sou o claro exemplo
do escriba amador, no sentido de não receber e também no de amar o que faz, sem
esperar receber por isso. Escolhi como atividade profissional, então, a de
professor, principalmente o de Literatura, para poder me manter e, ainda assim,
continuar falando e escrevendo sobre livros.
É essa profissão que
me dá a satisfação de, quase todos os anos, ler e reler, quando a memória
começa a falhar (e ela sempre falha), obras literárias fundamentais. Entre elas
está justamente a que é intitulada Memórias póstumas de Brás Cubas, do maior
escritor brasileiro, Machado de Assis, publicada em 1881. A releitura do
romance também foi motivada por uma edição recente da Penguim/Companhia das
Letras, com prefácio de Hélio de Seixas
Guimarães e estabelecimento de texto e notas de Marta de Senna e Marcelo Diego.
Edição caprichada, portanto, apesar da capa sem graça. Há outras boas edições à
venda, como a da Ática, na série Bom Livro, assim como adaptações para os
quadrinhos, como a elaborada em 2014, também pela Ática, com arte e roteiro de
César Lobo e Luiz Antônio Aguiar. A HQ serve para abrir o apetite e procurar o
banquete principal.
Brás
Cubas, que narra suas memórias, está morto (“não sou propriamente um autor
defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”) e resolve
contar a sua vida começando pelo fim, relatando a própria morte, por pneumonia,
enquanto refletia sobre a criação de um emplastro, espécie de remédio contra a
melancolia que iria imortalizar seu nome. Antes, porém, descreve um delírio,
que alguns chamariam de uma experiência de quase morte, em que faz uma viagem
em poucos segundos por todas as eras, do passado ao futuro, guiado por uma
mulher, chamada Natureza ou Pandora (“a visão estendeu o braço, segurou-me pelos
cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de
perto o rosto, que era enorme”), que lhe apresenta os flagelos e delícias,
glórias e misérias da condição humana. “Eram as formas várias de um mal, que
ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas
vestes de arlequim, em derredor da espécie humana.”
Depois,
Brás Cubas retoma o seu nascimento, contando as diabruras da infância e os
maus-tratos ao pequeno escravo da família. No entanto, o cerne da narrativa são
os seus amores, da adolescência à idade adulta, pintados com tintas nada
coloridas. O narrador não pouca a si mesmo ao relatar a paixão pela
interesseira Marcela, mulher mais velha a quem enchia de presentes. “Marcela
amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.” Também não
esconde o misto de encanto e desprezo por Eugênia, linda jovem que tinha um
problema físico de nascença. “O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma
boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria
suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se
coxa? por que coxa, se bonita?”
Seu
grande amor, entretanto, é Virgília, que acaba se casando, devido ao interesse
do pai, com um político de carreira promissora. Tornam-se amantes durante muito
tempo, até que ela vai embora, seguindo o marido que assumiria a presidência de
uma província do norte. Quando se reencontram, já estão velhos e nada mais há
entre eles.
Brás
Cubas, aos 64 anos e solteiro, morre. No final, no capítulo das negativas,
afirma: “Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui
califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me
a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto”. Pesando os prós e
contras, o defunto reconhece seus erros e por isso declara, considerando ser um
saldo positivo, o fato de não ter deixado herdeiros: “−Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Um
dos grandes monumentos artísticos da arte brasileira, o romance mescla
filosofia, sociologia, psicologia e literatura para revelar nossa triste
condição humana. Só não é reconhecida como uma das grandes obras da literatura
universal, porque Machado de Assis teve a má sorte de ter nascido brasileiro.
Cassionei Niches
Petry é escritor. Autor de Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral). Escreve regularmente para o
Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com.
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