“Os relógios matam o tempo”


O crítico Júlio Nogueira desejava escrever algo sobre O som e a fúria, de William Faulkner (Companhia das Letras, 376 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), para não deixar passar em branco a reedição de um dos seus romances preferidos. Para isso recorreu às anotações do seu “moleskine de pobre” sobre a última releitura do livro, bem como decidiu reescrever um texto seu já publicado na coluna que tinha num jornal da sua cidade. Como a coluna foi extinta, recorreu a este blogueiro que, com muita honra, cede o espaço ao mestre.
1.
Um desavisado que começa a ler O som e a fúria tem vontade de desistir nas primeiras páginas. Linguagem difícil, enredo aparentemente confuso, saltos inesperados no tempo de uma linha para outra. O primeiro capítulo, intitulado “7 de abril de 1928”, é narrado por um deficiente mental, um homem de 33 anos e uma cabeça de 3 anos. O que lemos são os seus pensamentos, pois ele não fala, é a reprodução de tudo o que ouve e, principalmente, cheira, as sensações olfativas é o que o liga ao mundo, é o que estimula o monólogo de um indivíduo sem voz. Seu nome é Benjamin, apelidado de Benjy, que foi batizado com o nome de seu tio, mas depois mudaram quando descobriram seu retardo mental. A narrativa se passa no presente, pula para adolescência, chega à infância de Benjy e continua nesse vai e vem, e só podemos nos localizar nessa linha cronológica a partir dos criados negros da casa que cuidam dele em cada uma das épocas: Luster, T. P. e Versh. Aconselha-se ao leitor que não tente colocar lógica no enredo, apenas se deixe levar pelas palavras, no fluxo de sensações que vão se desencadeando. A história ficará mais claras nos próximos capítulos.
2.
Não, não é verdade. A história ainda não fica tão clara no segundo capítulo, que traz no título outra data, “2 de junho, 1910”. Aqui o irmão de Benjy, Quentin, também num furioso monólogo, relata acontecimentos da decadente família Compson, em mais um tijolo da narrativa de uma “vida como perpétua decomposição”, como escreveu um analista da obra. Quentin relata sua relação com a irmã Candace (Caddy), num suposto caso incestuoso, e planeja seu suicídio. Estuda em Harvard a partir do dinheiro adquirido pelos Compsons que venderam parte do terreno para um clube de golfe, na primeira tacada que os levou ao buraco, com o perdão do péssimo trocadilho. É a mais difícil e a mais analisada passagem do romance.
3.
A terceira parte, “6 de abril, 1928”, é mais linear e a fúria não está na narração, mas sim nos atos e diálogos de Jason, o terceiro dos irmãos homens da família Compson. Voltamos ao tempo presente do enredo, porém um dia antes do primeiro capítulo. Sua sobrinha, Quentin, nome recebido em homenagem ao outro tio depois de seu suicídio, é uma jovem que “mata” aula para se encontrar com um artista de um circo. Jason, por sua vez, a trata muito mal e a engana, roubando o dinheiro que a mãe, Caddy, que fugiu de casa depois de dar à luz a filha, manda para ela. O ódio entre os dois parentes é a tônica desse capítulo.
4.
A quarta parte, em terceira pessoa, tem o ponto de vista da que considero a personagem mais importante da história, a empregada negra Dilsey, a responsável por manter ainda de pé a casa, as pessoas, enfrentando o mau humor dos patrões, principalmente da matriarca Caroline. Os pontos são ligados, o leitor se situa melhor na história e tem uma visão mais clara dos acontecimentos, que se esclarecerão mais ainda no apêndice que Faulkner acrescentou nos anos 40.
5.
Haveria muitas coisas ainda para escrever sobre O som e a fúria, por exemplo, sobre o povoado fictício de Yoknapatawpha, onde se passa a maioria dos romances e contos de Faulkner, mas não quero abusar do espaço concedido pelo Cassionei. Para concluir, é importante mencionar que o título do romance foi retirado da peça Macbeth, de Shakespeare: “a vida (...) é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada”. Para quem gosta de desafio, mergulhar no universo desse livro é uma aventura intelectual e emocional assombrosa.

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