Quando se perde um membro


Leonardo Brasiliense reforça intencionalmente alguns clichês sobre famílias disfuncionais em seu segundo romance, Roupas sujas (Companhia das Letras, 177 páginas): a primogênita que vê a irmã mais nova se casar primeiro e além disso precisa assumir o papel materno já que a mãe morreu, os gêmeos que disputam a mesma mulher, um pai autoritário e beberrão, que também tem uma rixa com um vizinho por causa de limites de propriedade, terminando de forma trágica, a irmã boazinha e o irmão que a tudo observa, analisa e depois transforma em um romance.

O que poderia ser um problema, nas mãos de um bom escritor como Leonardo Brasiliense se percebe que é uma estratégia e não deixa de ser um resgate de um tipo de narrativa que pouco se faz hoje em dia, um relato de uma família do interior com todos os códigos patriarcais bem delineados e as funções de cada membro estabelecidas e que são devidamente trocadas quando um membro falta. Não por acaso cada um dos gêmeos perde uma parte do corpo (um a orelha e outro o pé) e uma irmã vai morar longe depois de casar, simbolizando todas as perdas existenciais.

O narrador de boa parte da trama é um dos filhos do meio, Antônio, contando a história de sua família a partir da morte da mãe no parto do sétimo filho, que quebrou todo o equilíbrio do lar. Sua ausência é sentida por todos daquela família de descendentes de italianos do interior, que vivem em meados dos anos 70, colonos que tiram da terra o seu sustento e que por isso são em grande número: “Aquilo na roça, e na época, era necessário. Um empregado custava caro, um meeiro exigia dividir a colheita. Filhos, portanto, eram riqueza, e todos tinham função.” Aliás, na primeira frase o narrador nos informa que seu pai teve oito filhos. Na casa, temos, além de Antônio, Geni, a mais velha, Maria Francesca, que se casa e vai embora, os gêmeos Estevam e Ferrucio, Valentina, a irmã mais próxima do narrador, e o caçula Pedro. São sete. O oitavo, ou a oitava, deduziremos no decorrer da trama.

Os conflitos que vão se sucedendo, dentro da própria família e com outra família vizinha, são narrados com precisão, mas deixando lacunas que aos poucos vão sendo preenchidas, muitas vezes por um narrador em terceira pessoa, que aparece em notas de rodapé. A tensão aumenta, sempre esperamos que algo grave está para se suceder: o que acontecerá entre gêmeos por causa do amor de Ana, a filha do casal vizinho? Haverá mais uma perda na família por causa disso? Maria Francesca viverá feliz com o marido? Geni aguentará até quando sua vida de solteira? E a briga entre os vizinhos por questões de terra, até onde vai? Brasiliense consegue nos enredar até o final dessa primeira parte e nos dá um desenlace convincente. O problema é que ele resolve estender o enredo e aí o romance perde seu impacto.

 Na segunda parte, a narradora é Valentina, no que parece ser uma série de cartas, ou talvez e-mails, para o irmão anos depois dos acontecimentos. O que poderia ser apenas um fechamento da história, revelando o que acontece com cada um dos personagens no futuro, traz, no entanto, alguns dramas da família que ela recém-formou, numa revelação de que tudo não passa do eterno retorno do mesmo, mudam-se as pessoas mas os problemas se sucedem, porém são fatos contados de forma apressada, sem a tensão da primeira parte e com novos personagens que não são desenvolvidos. Torna-se um trecho dispensável.

Ainda somos levados a ler uma derradeira parte, dessa vez narrada por Pedro, o caçula responsável pela morte da mãe, e que agora está se tornando padre. Em páginas de um diário, elenca as pessoas a quem gostaria de agradecer pela ordenação e são citados outros personagens, que mais uma vez não serão desenvolvidos pois já estamos nas páginas finais, como um companheiro do seminário e um detento que é atendido pela Pastoral Carcerária, que parece saber algo sobre a vida do quase padre. Ainda há uma pequena nota de rodapé final, e mais uma personagem nova surge e desaparece, de forma totalmente dispensável.


Saio da leitura, infelizmente, com a sensação de que há páginas sobrando, membros que poderiam ser amputados no romance e que, nesse caso, não fariam nenhuma falta.

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