Mais um Nobel para um brasileiro (pelo menos na ficção)
O Nobel de Literatura é um prêmio que causa polêmica. Há
sempre discussões acaloradas sobre quem perde ou quem ganha, principalmente
agora, com a amplificação proporcionada pelas redes sociais. Há pouco tempo, houve
quem fosse contra o vencedor ser o compositor Bob Dylan, enquanto Philip Roth,
para citar apenas um nome entre tantos, era preterido.
Neste ano, uma denúncia de abuso sexual envolvendo membros
da Academia Sueca, que escolhe o vencedor, fez com que o prêmio fosse
cancelado. Por ironia do destino, logo depois do escândalo, morreu Philip Roth,
em cuja obra há personagens que costumam assediar mulheres. Entra na lista
seleta de escritores que não foram contemplados, como Borges, Nabokov, Kafka,
Cortázar, Tolstói, Drummond, Proust, Joyce...
Quantos aos brasileiros, a decepção é por jamais nosso país ter
sido merecedor de um Nobel, em que pese termos batido na trave algumas vezes,
pelo que consta nos arquivos revelados pela Academia. Na ficção, no entanto, já
foram escritas algumas obras em que um brasileiro é galardoado. Em 2002,
Fernando Monteiro publicou o romance O
grau Graumann, pela Editora Globo. O escritor fictício Lúcio Graumann,
gaúcho de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul (da minha cidade, ora vejam),
quase desconhecido da maioria do público, recebe o Nobel de Literatura de 2001.
Decide, no entanto, se esconder da mídia, evitando todo o agito em torno do
vencedor, permitindo que apenas um jornalista, seu velho conhecido, o
entreviste. Monteiro planejava uma trilogia sobre Graumann, mas escreveu apenas
o segundo volume, As confissões de Lúcio.
Entretanto, outro romance do autor, O
livro de Corintha, tem elementos que nos remetem ao nobelizado. Já neste
ano, Jacques Fux escreveu Nobel (José
Olympio Editora), em que o vencedor é nada mais nada menos do que o próprio
Fux. Infelizmente, ainda não li o romance, que, ao que parece, carrega as
tintas na autoficção.
Curiosamente, o protagonista é laureado em 2018,
justamente no ano em que a escolha foi suspensa.
Também neste ano, Mauricio Lyrio lançou O imortal (Companhia das Letras, 340 páginas). Dessa vez, o
laureado é o escritor fictício Cássio Haddames, que recebe o Nobel no ano de
2025, apesar de ter apenas 3 livros publicados. Atuando como diplomata (mesma
profissão do autor do romance), seu nome é lembrado a partir de uma armação
diplomática, em que se tenta melhorar a imagem do Brasil no exterior. Na verdade,
o objetivo é premiar o Presidente da República, Marcos Febuen (eleito em 2022),
para o Prêmio Nobel da Paz, alavancando, assim, sua reeleição. A ideia era
indicar os dois nomes para as premiações distintas, para não parecer que tudo
fora planejado, porém não contavam que Haddames fosse escolhido,
impossibilitando que o país fosse duplamente laureado.
“O Cássio era só
fachada. Cortina de fumaça. O chanceler não podia indicar somente o presidente.
Ia pegar mal. Favorecimento. Tinha que parecer uma estratégia ampla.”
Consequentemente, seu nome passa a ser aventado para
concorrer à presidência. Crescem, então, na narrativa as figuras do senador
Otto e do deputado Nelson, em cujos diálogos se revelam os bastidores da
política nacional.
Como todo bom romance, porém, são as questões mais íntimas
do ser humano que ganham relevo. No âmbito familiar, suas relações com os
filhos, principalmente André; a paixão pela argentina Alicia, que conheceu na
cerimônia de entrega do Nobel, em Estocolmo; um acidente em que se envolveu
quando ainda não era escritor conhecido e que se tornou o estopim para a
carreira (“Comecei a escrever um romance.
Não, não estou brincando. Farei algo sobre o garoto que matei.”); as
reflexões sobre a escrita (“Nenhuma
tarefa é mais absorvente e autorreferente do que passar meses ou anos a fio
escrevendo-se, exteriorizando-se num filho concebido, gestado e parido na
solidão.”).
A estrutura é interessante. O romance começa com algumas
páginas do diário de Haddames, que vão aparecendo fora da ordem cronológica
durante toda a narrativa. Depois, a história segue através de telegramas,
cartas, e-mails (inclusive em espanhol), matérias jornalísticas, relatórios do
psicanalista de André, diálogos pelo telefone, trecho de um debate para a presidência
(mediado pelo William Bonner), partes do discurso de agradecimento pelo Nobel,
etc. Há também um edital fictício de 2027 que concede uma bolsa de escritor-leitor,
ideia de um ministro da cultura, em que os escritores recebem um valor para
comprar livros de seus pares. Na lista de autores, quase todos reais, e livros,
todos fictícios, para serem lidos estão, por exemplo, o gaúcho Sérgio Faraco,
que nos brindará (espero que profeticamente) com sua primeira novela, O camaleão, e Raduan Nassar, que voltará
a escrever literatura a partir da publicação de A cal e as pedras da nossa catedral.
O equivocado desfecho de O
imortal, previsível a determinada altura do enredo, não estraga o romance,
pois a narrativa foi muito bem arquitetada. Mauricio Lyrio, que publica apenas
suas segunda obra, apesar de já ter 51 anos de idade, é um nome que vem se
firmando no cenário literário brasileiro.
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