Não quero ser Capitu
Quando se relê um clássico depois de alguns anos e após
falar tanto sobre ele em sala de aula, pode-se ter uma decepção, ainda mais
para um sujeito como eu que tem uma memória muito ruim. Leio e esqueço o que
leio. Reli Dom Casmurro, para muitos
o melhor romance de Machado de Assis e, confesso, mudei um pouco minha
percepção sobre a obra.
Sempre que se resume o enredo do romance, destaca-se a
desconfiança de Bento Santiago, o narrador, de que Capitu o traiu com Escobar.
A desconfiança se dá porque o amigo morre e, durante o velório, Bentinho nota
que “Capitu olhou alguns instantes para o cadáver de forma tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltasse algumas lágrimas poucas e
caladas...” Foi um alerta. A partir disso, passou a notar semelhanças do seu
filho com o finado. Tudo isso, no entanto, aparece apenas perto do final da
narrativa, na verdade é o clímax. Boa parte das páginas do romance trata da
infância, adolescência e o período em que o narrador passa no seminário. Para
quem deseja chegar logo aos trechos mais conhecidos, deve percorrer longas e às
vezes cansativas passagens em que o menino Bentinho tenta escapar da promessa
de sua mãe de torná-lo padre, seu namoro pueril com Capitu as tiradas de José
Dias e um e outro momento de ciúmes do rapaz em relação à namorada. Fiquei,
nessa releitura, com a impressão de que muita coisa do romance é dispensável, o
mesmo não ocorrendo em Memórias póstumas
de Brás Cubas, para mim o melhor romance de Machado, em que nada sobra.
Se a estrutura é falha, o mesmo não se pode dizer da
proposta de esconder do leitor o que realmente aconteceu, gerando o famoso e
ainda não superado “enigma de Capitu”, que provocou inclusive uma simulação de
julgamento em 1999 sobre o suposto adultério, com a participação de advogados e
juízes, além de escritores e críticos. Mesmo que várias pistas sejam
oferecidas, o leitor desconfia delas porque tudo é apresentado pelo ponto de
vista de Bentinho. Capitu deixou escapar um sentimento desproporcional no velório
de Escobar? Isso é o marido quem nos afirma. Ezequiel, seu filho, é
parecidíssimo com o finado? É Bentinho quem diz. Mas Capitu também mencionou as
semelhanças! Ora, pode ser o próprio narrador que imaginou isso. Escobar não
foi algumas vezes à casa de Bentinho na ausência deste, quando somente Capitu
estava? Sim, pode ser, no entanto sempre houve explicações plausíveis para as
visitas.
Em princípio, penso que Machado insere a peça Otelo, de Shakespeare, para nos dizer
que Bentinho é como o Mouro de Veneza, sujeito que, pressionado pelo manipulador
Iago, se convence que a inocente Desdêmona o traiu. Ao batizar seu narrador de
Bento Santiago (Santo+Iago, como demonstrou a ensaísta americana Helen
Caldwell), podemos inferir que ele também manipulou a si mesmo para se
convencer do adultério da inocente (?) Capitu. Aliás, o agregado José Dias
também representa Iago em muitas passagens e o próprio narrador aponta isso no
capítulo LXII.
Por outro lado, há quem afirme que o romance é uma confissão
de culpa do próprio escritor. Dizem as línguas ferinas que Mário de Alencar,
filho de José de Alencar, na verdade era filho de Machado de Assis. Mário era
um escritor mediano que se tornou protegido por Machado, primeiro presidente da
ABL, que inclusive mexeu os pauzinhos para conseguir para o filho do amigo uma
cadeira na Academia.
O romance é tão aberto a interpretações que há até a
possibilidade de Betinho não ter ciúmes de Capitu, mas sim de Escobar. Há
muitas passagens que sugerem isso, como esta: “Apalpei-lhe os braços (...):
achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhe inveja; acresce que
sabiam nadar”. Note-se que os braços são objetos de atração para várias
personagens de Machado, notadamente no conto que se chama, justamente, “Uns
braços”.
Se vale a leitura de Dom
Casmurro? É lógico que sim, em que pese sua falta de equilíbrio estrutural,
que me incomodou nessa releitura. Machado, no entanto, é Machado. É nosso maior
escritor. No conjunto de sua obra, e nesse romance não é diferente, há sempre passagens
brilhantes, frases que ficam ressoando na nossa mente, os não-ditos que
instigam e a análise sempre peculiar do indivíduo que somente o Bruxo do Cosme
Velho sabe fazer. Não serei eu uma espécie de Capitu para trair (ops!) Machado.
Ele está no meu panteão pessoal e jamais sairá desse altar.
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