Vargas Llosa: crítico dos outros e de si mesmo


Nas páginas centrais do Caderno de Sábado  do Correio do Povo, de Porto Alegre, antecipo, num curto ensaio, o que vou abordar na minha participação no 10º Festival de Inverno de POA: a atividade de Vargas Llosa como crítico literário.


Os primeiros ensaios literários de Mario Vargas Llosa foram reunidos no volume Contra vento e maré (Francisco Alves, tradução de Carlos Jorge Branco Bailly), definido por ele mesmo, sem receio da autocrítica, como uma “súmula de contradições, ingenuidades, equívocos e uma ou outra intuição feliz (...)”. Logicamente, isso se refere a um conjunto de textos que envolve não apenas a crítica literária realizada pelo escritor peruano, mas também a análise política presente na obra, principalmente em relação ao que pensavam Sartre e Camus, símbolos, de certa forma, de uma mudança de ideias e uma revisão ideológica de Vargas Llosa. O crítico elogia o trabalho do autor de A náusea enquanto concorda com sua visão política e faz ressalvas à obra do criador de O estrangeiro, mais precisamente o caráter filosófico: “Camus era admirável quando se deixava guiar pela intuição e imaginação, e um escritor medíocre quando se abandonava à pura reflexão”. Na metade dos anos 70, na medida em que passa a discordar politicamente de Sartre, revê também o que pensa sobre a obra deste (“...suas afirmações sobre a literatura e a função do escritor, que num momento pareceram-me artigos de fé, hoje me parecem inconvincentes...”), enquanto Camus passa a ser analisado de forma mais positiva. Apesar disso, seu conceito de arte, a que deve ser valorizada, tenta se desvencilhar das questões ideológicas. Para Llosa, a literatura sempre é maior do que a política.

O livro mencionado, cujos textos datam do início dos anos 60 até o início dos 80, apresenta um intelectual em constante aprendizado, que não tem nenhuma vergonha de errar e se reinventar. O que nunca mudou foi a exaltação da grande arte, em detrimento da arte que serve apenas ao espetáculo, ao entretenimento, perdendo sua grandeza em função de atender a um público amplo. Sobre isso, escreve em um ensaio presente no livro A civilização do espetáculo (Editora Objetiva, tradução de Ivone Bendetti): “Para essa nova cultura são essenciais a produção industrial maciça e o sucesso comercial. A distinção entre preço e valor se apagou, ambos agora são um só, tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo. É bom o que tem sucesso e é vendido; mau o que fracassa e não conquista o público. O único valor é o comercial. O desaparecimento da velha cultura implicou o desaparecimento do velho conceito de valor. O único valor existente é agora o fixado pelo mercado”. É sob esse prisma que se deve levar em conta seus ensaios literários.

Um livro importantíssimo, marco inicial da trajetória de ensaísta de Mario Vargas Llosa, é García Márquez: historia de un deicídio, lançado em 1971 e ainda sem tradução no Brasil. Ensaio de fôlego, resultado de sua tese de doutorado, esmiúça os seis primeiros livros do Prêmio Nobel de 1981, de A revoada ao consagrado Cem anos de solidão. A ideia central, sugerida pelo título, é a de que o escritor mata Deus e, como o Demônio, deseja suplantá-lo. “Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra a criação de Deus que é a realidade” (tradução minha). García Márquez, com a recriação de um mundo, a partir de Macondo, é um deicida de marca maior.

No mesmo ano, Vargas Llosa se volta sobre sua própria obra em Historia secreta de una novela, um livro curto, que às vezes serve de posfácio ao romance A casa verde. Surgiu como uma conferência realizada na Washington State University em que apresenta o seu processo de criação. “Escrever um romance é uma cerimônia semelhante ao strip-tease. Como a mulher que, debaixo de impudicos refletores, se livra de suas roupas e mostra, um por um, seus encantos secretos, o romancista desnuda também sua intimidade em público através de suas novelas” (tradução minha), afirma Llosa na abertura do discurso.

Em 1975, vem à luz A orgia perpétua (a edição que tenho é da Francisco Alves, traduzida por Remy Gorga Filho). Vargas Llosa analisa de três maneiras distintas o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Num primeiro momento, revela suas impressões subjetivas sobre a obra“Desde as primeiras linhas o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de modo fulminante, como um feitiço poderosíssimo.” Depois, através de uma objetividade científica, registra a gênese do romance, a “lenta escrupulosa, sistemática, obsessiva, teimosa, documentada, fria e ardente construção de uma história”. Na terceira parte, situa obra no seu lugar histórico, comparando-a com outros romances. Afirma, por fim, que a obra-prima de Flaubert incorreu “no crime de Lúcifer: querer romper os limites, ir mais além do possível”, fixando “um topo mais alto para o romance e a crítica”.

A verdade das mentiras é de 1990. Partindo de uma afirmação reiterada em boa parte de sua obra ensaística, de que “os romances sempre mentem”, Vargas Llosa analisa dezenas de romances modernos com uma capacidade ímpar de fazer relações, abordar temas e destrinchar a feitura das obras. Cartas a um jovem escritor, de 1997, traz dicas a um aspirante a romancista e, de certa maneira, ensina como se deve ler um romance. Se no livro sobre Gabriel García Márquez ele nos fala sobre “el dato añadido” (dado acrescentado, numa tradução livre), agora ele reforça o contrário, o “dado escondido”, aquilo que o artista escamoteia e que o leitor precisa levantar o tapete para achar. É a história sob outra história, a parte submersa do iceberg, para utilizar a metáfora de Hemingway.

Mario Vargas Llosa ainda escreveu livros de ensaios dedicados inteiramente a Victor Hugo e Juan Carlos Onetti (em A tentação do impossível e El viaje a la ficción, respectivamente) e, recentemente, publicou Conversación en Princeton (título que faz referência a uma das obras-primas do escritor, Conversación en La Catedral), com a transcrição das aulas que o escritor ministrou na universidade norte-americana, analisando o romance de uma forma geral e depois se detendo em cinco de suas obras. Mais uma prova de que Llosa é muito mais do que um excelente romancista.


Cassionei Niches Petry é professor de Literatura e crítico literário. Autor do romance “Os óculos de Paula” e do livro de contos “Cacos e outros pedaços”.

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