Um romance sobre as palavras
Se eu fechar os olhos
agora, de Edney Silvestre (Record, 266 páginas), não é um romance sobre um
crime. Quer dizer, é, mas não é. É um romance que trata de um crime, da
investigação sobre este crime, das pessoas envolvidas, de suspeitos, de
inocentes, de intriga entre poderosos (da política, da igreja, da polícia) e
traz ainda temas como racismo, machismo, adultério, abandono, perversões
sexuais. Em muitos momentos, lembra os romances policiais dirigidos ao público
infanto-juvenil, como O gênio do crime,
de João Carlos Marinho, recentemente falecido, ou A droga da obediência, de Pedro Bandeira, pois dois dos “detetives”
da história são meninos entrando da adolescência, ajudados por um velho,
morador de um asilo. No entanto, é um romance adulto, bem adulto, impróprio
para menores em muitos momentos.
Como eu dizia, não é um romance sobre um crime. É, na
verdade, um romance sobre as palavras. Ele não é apenas composto por palavras,
mas elas têm também papel fundamental na história. É a palavra dita ou escamoteada
(“Não repetirei a palavra que usou para definir a relação dos velhos com os
meninos”, diz uma freira ao velho), a certa ou a incorreta, a que consola ou
machuca, a que nomeia, a que julga, a de gente importante, a do inocente, a que
acentua a diferença de classe social ou de raça, a que vale e a que não vale,
as palavras feias e as bonitas, as antigas e as novas, as nobres e os palavrões
(“...poucos hoje em dia sabem que chato é palavra de baixo calão”, diz a mesma freira).
Muitas são guardadas por um dos meninos em tiras de papel, com seus
significados vistos no dicionário do amigo, que corrigia o outro quando derrapava
na língua. Um deles é quem escreve a história. O outro esboça a história, não
encontra as palavras para contar o que viveram. O outro então as encontra e
elas formam a história que lemos.
Paulo e Eduardo são os meninos. Têm doze anos quando o
enredo se desenrola. Início dos anos 60, o país vivendo entre duas ditaduras,
mas que continha pequenas tiranias nas cidades do interior. Um desses
territórios é governado há três gerações pela família Marques Torres. “Nada
neste país é o que parece. E esta cidade é um microcosmo do Brasil”, diz o
velho aos meninos. Ubiratan é seu nome, mas também é Basílio da Gama, quando se
disfarça de padre para obter informações de uma freira, ou Basílio Gomes,
quando se disfarça de advogado da família da mulher assassinada. Anita é o nome
dela, mas não o nome de pia. Ela era loira, mas não era branca. Era casada com
o dentista da cidade, mas não era sua mulher. Nada é o que parece ser nessa
história.
Tudo começa com os meninos encontrando-a morta na beira de
um lago. Num primeiro momento viram suspeitos, até que o dentista assume a
culpa. Ele, porém, é muito velho e fraco, por isso os meninos não acreditam
nessa possibilidade. Então decidem investigar, vão se meter onde não deviam,
vão mexer num vespeiro, com a ajuda do velho Ubiratan, um homem que não fecha
os olhos para a injustiça. E o que se segue é uma trama que nos prende,
conduzindo para um final que, se não nos surpreende de todo, é bem amarrado, mas
com um nó que ainda pode ser desfeito.
Edney Silvestre demonstrou suas qualidades literárias nesse
primeiro romance, lançado em 2009, e que recebe agora, exatos dez anos depois,
uma nova edição, motivada pela minissérie da TV Globo inspirada no livro. Se no
jornalismo demonstrava saber como poucos trabalhar com as palavras, na literatura
vem seguindo a mesma trilha.
(Outra resenha sobre o autor no blog aqui.)
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