NÓS TAMBÉM SOMOS ANIMAIS



 Como mencionei na coluna passada O carnaval dos animais, livro de contos de Moacyr Scliar publicado originalmente em 1968, vale falar mais sobre a obra, relançada recentemente pela Editora L&PM, num momento em que os bichos estão à solta no cenário nacional.

O título é inspirado na suíte musical homônima do compositor francês Camille Saint-Saens e traz algumas histórias que têm animais como personagens. O ser humano, porém, é o animal protagonista.

Em “A vaca”, por exemplo, a ruminante, carinhosamente chamado de Carola, é quem fornece ao náufrago tudo o que ele precisa para sobreviver na ilha deserta: o leite, a carne (que ele vai cortando aos poucos, ainda a mantendo viva), o couro, a cauda para espantar as moscas, um dos olhos para ingerir como alucinógeno, enfim. Há uma sucessão surreal de acontecimentos que nos remete ao absurdo da crueldade humana.

“As ursas”, por seu turno, é um conto que dialoga com o texto bíblico, recurso que Scliar usaria em toda a sua obra. Eliseu, um profeta, roga uma praga aos meninos que debocharam de sua careca e eles são devorados por duas enormes ursas. Dentro de uma delas, os jovens formam uma nova comunidade, uma “curiosa raça de anões”, com sua própria religião, que também tem seu profeta e que por sua vez também é zombado pelos mais jovens até que... E segue o eterno retorno do mesmo.

Em outra narrativa, um pequeníssimo cão de guarda é treinado para devorar marginais e o faz sem deixar um restinho sequer de carne humana. Basta que ouça a palavra bandido para que o animalzinho mate sem dó nem piedade o outro. Acontece que ele pode se voltar contra o próprio dono também. É aquela coisa: dê uma arma para a pessoa despreparada e veja o que pode acontecer. Qualquer semelhança com nossa realidade não é mera coincidência.

Em alguns contos em que os animais não aparecem, percebe-se o lado animal de luta pela sobrevivência se sobrepor. Em “Canibal”, uma mulher se auto devora pois sua irmã, ambas perdidas depois de um avião cair nos altiplanos bolivianos, não lhe dá a comida que trouxe consigo em um baú. Em “Torneio de pesca”, os competidores cortam os braços de um homem que estaria trapaceando ao se utilizar de poderes sobrenaturais.

Há também contos com uma dose de ironia, humor sutil, humor judeu (origem do escritor), que faz o leitor dar aquele sorriso de canto dos lábios e não são tão violentos como os demais. E da mesma forma há histórias comoventes, como “Trem fantasma” (que não apareceu na primeira edição da obra), em que uma família, junto com um amigo, reproduz para o filho doente o clássico brinquedo dos parques de diversão, porém nos corredores da própria casa.

Eu tinha e sempre terei um carinho especial pelo Scliar, que leu meus primeiros contos e os elogiou, em e-mail que reproduzo na quarta-capa do meu primeiro livro, "Arranhões e outras feridas". Sua generosidade era ímpar. Relê-lo é amenizar o lado selvagem que todos temos.

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