Seria Madalena uma nova Capitu?
A releitura de obras canônicas da literatura
brasileira me permite ter um olhar diferente daquele rapaz que cursava a
universidade na virada do século, antes guiado pelo ponto de vista dos
professores e dos ensaios sobre os livros. “S. Bernardo”, de Graciliano Ramos, por
exemplo, me parece agora, na leitura recente, muito mais um livro sobre o ciúme
do que um romance social e regionalista, preocupado em analisar as mazelas da
sociedade da época ou discutir as questões políticas como a disputa entre o
capitalismo e o comunismo, como aprendi. O romance está na 102ª edição pela Editora
Record, que opta agora apenas pela abreviatura “S.” no título, como na 1ª
edição de 1934, no lugar da palavra “São” que vinha sendo utilizada há décadas.
Paulo Honório, dono da fazenda cujo nome dá título
à obra, resolve escrever suas memórias, mais precisamente sobre sua ascensão e
depois a derrocada, passando, claro, pelo seu casamento protocolar com
Madalena, professora com ideologias bem distintas do marido. Chama a atenção
que o início é semelhante ao de “Memórias
póstumas de Brás Cubas” e ao de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, primeiro por discutir sobre
o porquê das memórias e também como escrevê-las (“Antes de iniciar este livro,
imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”), mas também por demonstrar
desde o começo que iria se descrever não com cores positivas, mas sim da forma
mais fiel possível, realisticamente, sem se poupar, revelando sua falta de
caráter em vários momentos.
Diferentemente de Bentinho (narrador de “Dom
Casmurro”), no entanto, Paulo Honório não reconhece que estava apaixonado por
Madalena, mas desconfia da esposa em vários momentos. Na verdade, seu
sentimento é mais de ciúme em relação a sua propriedade, pois é assim que
enxerga a mulher, mais um de seus bens adquiridos durante a ascensão. Aliás, é
o mesmo sentimento que nutre pelo filho, que quase não aparece, é apenas citado
vez ou outra como mais uma de suas posses. “Madalena estava prenhe”, é a frase
com que ele anuncia ao leitor a gravidez da mulher, mas logo passa para outro
assunto. Nem mesmo narra o nascimento da criança, que aparece na história
quando está chorando enquanto ele pensava num problema em uma máquina da
fazenda, e só então escreve: “Madalena tinha tido menino.” E só.
Como é o ponto de vista é o do Paulo Honório, não
sabemos se Madalena o traiu ou não, assim como não sabemos nada em relação a
Capitu em relação a Bentinho. Graciliano também não tenta fazer disso outro
enigma como o machadiano, o narrador não diz que seu filho não é parecido com
ele, por exemplo, mas a indiferença emocional é bem ressaltada: “Nem sequer
tenho amizade ao meu filho. Que miséria!” Seria ciúme agora em relação ao
herdeiro, que tomaria posse de tudo o que ele ainda tinha?
É o ciúme do marido que leva Madalena a cometer
suicídio. (“O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.”) Questiono, porém, se
ela não o fez movida por um sentimento de culpa.
Homem bruto, com uma vida bruta e que passou por
cima de todos para tomar posse do que queria, a vida também acabou sendo bruta
e passou por cima dele. Se negociava sempre em benefício próprio, a vida também
negociou com ele e agora, no final, cobra com juros o seu preço. Um dos poucos
romances que, felizmente, só melhorou com a releitura, diferente de outros que
releio. Assunto para outros devaneios desta coluna.
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