O leitor incomum


O título da coluna de hoje é o mesmo de um dos ensaios do livro “Nenhuma paixão desperdiçada”, de George Steiner, reeditado recentemente pela Editora Record, tradução de Maria Alice Máximo, e define de forma precisa seu autor, que morreu nesta semana, aos 90 anos. Um dos últimos grandes intelectuais que mereciam esse título (assim como Harold Bloom, que também nos deixou recentemente e que foi homenageado neste espaço), crítico literário avessos a modismos como o pós-estruturalismo e um professor à moda antiga, que mandava os alunos decorarem poesias e ensinava os clássicos.

Acima de tudo, porém, era um leitor, que no ensaio mencionado define o leitor ideal, a partir da análise de um quadro, “Le philosophe lisant”, do pintor barroco Jean-Baptiste-Siméon Chardin. “O leitor não vai ao encontro do livro em trajes informais ou em desalinho. Veste-se para o grande evento", inicia, ao descrever as roupas do filósofo. Então me decepciono comigo mesmo, visto que leio o texto usando bermuda e chinelo. Além disso, Steiner afirma que “ler com toda a atenção é fazer silêncio. Esse tipo de silêncio, a esta altura da vida contemporânea na sociedade ocidental, tende a se tornar um luxo”. Acrescenta ainda que ter sempre um som ligado ao fundo quando lemos, como o fazem, principalmente, os adolescentes, nos torna “meio-leitores”. Senti-me diminuído, pois leio ouvindo música, geralmente com fones, até para fugir do barulho da rua ou mesmo de dentro de casa. Foi um bom puxão de orelha do mestre. Como todo aluno, porém, vou ignorá-lo nestas lições.

Mas há lições desse ensaio que carregarei sempre comigo. Ao citar a ampulheta ao lado do filósofo no quadro analisado, Steiner relaciona o tempo, que escorre como a areia, com o livro sobre a mesa: “O tempo passa, mas o livro permanece.” E acrescenta: "O mármore se desfaz, o bronze perece, mas as palavras escritas − aparentemente o meio de expressão mais frágil − sobrevivem." Lembra-nos de um Gustave Flaubert enfurecido dizendo que ele morreria, mas a p*** da Emma Bovary, sua personagem, não.

Escreve Steiner, nesse mesmo ensaio, sobre a importância da interação do leitor com o que lê, simbolizado na pintura de Chardin pela pena usada pelo filósofo para escrever: “Ler bem é estabelecer uma relação de reciprocidade com o livro que está sendo lido”. E afirma, como se fora a descrição de si mesmo: “A definição de um intelectual é simples: é um ser humano que tem na mão um lápis quando está lendo um livro”.

Outra obra de George Steiner que mereceu reedição recente pela Record foi “Lições dos mestres”, também traduzida por Maria Alice Máximo. Uma obra de um grande mestre escrevendo sobre outros mestres, ora professores em relação a seus alunos, ora sábios e seus discípulos. Desde os filósofos gregos, principalmente Sócrates e Platão, passando também por Jesus Cristo, o livro aborda relações em que mestre e aluno acabam se envolvendo afetivamente, como Heidegger e Hannah Arendt. Retrata, da mesma forma, as personagens da literatura que são mestres, como Fausto em relação a Wagner, seu criado e aprendiz (e aqui Steiner se detém mais na peça de Marlowe do que na de Goethe), ou o rato de biblioteca Causabon e sua aluna Dorothea, em “Middlemarch”, de George Eliot.

Tanto falei sobre mestres nas últimas colunas (um real e um imaginário), que tive que voltar a um deles, dessa vez para anunciar sua morte. O bom é que, como o próprio Steiner escreveu, os livros permanecem e há muitos seus que ainda não li.

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