Uma estreia promissora
Nem sempre os concursos literários revelam bons escritores. Só
para dar um exemplo, embora de mais de meio século atrás, Wilson Martins, no
seu primeiro livro, “Interrogações”, critica três volumes de contos de autores
estreantes que, nos anos 40, receberam o Prêmio Humberto de Campos, promovido
pela José Olympio Editora. O implacável crítico detonou as obras e os premiados
caíram no esquecimento (não por causa do crítico, diga-se).
Não é o que acontece atualmente com o Prêmio Sesc de
Literatura, que nos apresenta um bom número de contistas e romancistas que vêm
se consolidando nesse meio tão ingrato e incoerente que é o literário, com
obras realmente de qualidade, que dificilmente me decepcionam. Na última
premiação, fomos apresentados a Tônio Caetano, com o surpreendente e bem arquitetado
livro de contos “Terra nos cabelos”, lançado pela Record, que apoia o concurso.
Os 15 contos me surpreenderam, num primeiro momento, por
trazer protagonistas e narradoras mulheres. Atualmente está “na moda” o “lugar
de fala”, sendo que escritores brancos são “cancelados” por escrever obras com
protagonistas negros, como aconteceu nos EUA. Da mesma forma, as temáticas do
racismo e a posição do negro na sociedade vêm se tornando comum e a diversidade
de gênero também se impõe como tema. O autor porto-alegrense, negro e homossexual,
escreve sobre o universo feminino sem que percebamos uma etnia definida, com
algumas exceções (“— Até que gostei do teu cabelo assim, agora é só engordar um
pouquinho e você pode fazer cover da Sandra de Sá.”), podendo-se questionar se
as personagens são negras ou brancas, mulheres, trans ou homens homoafetivos,
apesar dos pronomes femininos, demonstrando que na Literatura justamente o se
colocar na pele do outro, através do recurso do foco narrativo ou do ponto de
vista, com suas nuances e elipses, pode dar forma à ficção, mas sem deixar, é
óbvio, de abordar, em um momento e outro, a dura luta contra todas as formas de
preconceito.
Caetano não apenas usa bem os recursos narrativos no livro, mas
também dialoga com a tradição literária, como em “No jardim”, uma releitura de
“A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, sendo que não é o pai, mas a mãe
que resolve sair de casa, diferentemente do conto roseano. No primeiro conto,
que intitula o livro, a força da linguagem é a tônica, na história da avó da
periferia que cria o neto que se mete em uma encrenca, não vou revelar com
quem, bastando dizer que é com “aquela gente portadora da ruindade nativa”.
O erotismo está presente em muitos contos. “Aclamação” nos
apresenta uma operadora de caixa de supermercado, que depois de um dia puxado
de trabalho, se sente atraída por um homem no ônibus, mesmo sendo casada. No
conto “A casa no fim da rua”, um casal vai a uma casa de swing, mas a mulher
acaba se envolvendo com uma mulher solitária.
Em “Formação”, a protagonista é professora em um bairro
comandado pelo tráfico. Ela tenta ajudar um jovem, que apanhava dos colegas, a
estudar e passar no vestibular, porém acaba caindo numa enrascada. Já em
“Identidade”, uma mulher que sai de uma delegacia enquanto registrava uma
queixa que percebe ser inútil (“não importa para onde se corra quando é a vida
que te estupra”), é assaltada por uma garota de programa e, sem sua identidade
que estava na bolsa, acaba assumindo o papel da própria prostituta, a mesma que
será protagonista de outro conto, “Memória da delicadeza”.
“As estreias são os grandes enigmas na cidade das letras”,
afirmou Wilson Martins no mesmo texto citado anteriormente. No entanto, os
contos de “Terra nos cabelos” nos apresentam um autor estreante com mão firme,
que talvez possa escrever outras obras que irão contribuir para o
enriquecimento da literatura brasileira contemporânea. Aguardemos.
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