"Uma ponte sobre o abismo", minha crônica na Gazeta do Sul de hoje


 Uma ponte sobre o abismo

 O que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche tem a ver com um grupo de freestyle dos anos 80 (gênero musical que influenciou o funk carioca) liderado por um cara com cabelo cortado no estilo “mullet”? A relação começa com o nome da banda, “Will to Power” (vontade de poder, em inglês, um conceito nietzschiano), mas não para por aí.

A filosofia influenciou muito o rock (ver Rush, Engenheiros do Hawaii e Iron Maiden, por exemplo). Mas num estilo de música feito mais para dançar, pode parecer inusitado. Ou alguém para para refletir sobre a vida enquanto se diverte numa pista de dança? Confesso que já tive esses momentos reflexivos quando frequentava boates na minha adolescência, mas era na hora das “lentas”. Tímido que era, tinha medo de “levar um carão” das gurias, então me escorava nas caixas de som e devaneava, me perguntando, por exemplo, por que não estava em casa dormindo. Minha vontade de poder era nenhuma.

Na música pop, inclusive na dance music, se encontra uma ou outra referência filosófica e literária. No caso de “Will to Power”, no início do clip do seu maior sucesso, “Baby, I love your way/Freebird”, releitura de dois clássicos do rock, com letra filosóficas, diga-se, aparece o livro do Nietzsche que nomeia o grupo, obra organizada pela irmã do filósofo, quando ele já sofria de um colapso mental. O álbum ainda traz a faixa “Zarathustra”, cuja letra só fala em dançar, porém o título faz referência a outra obra nietzschiana, “Assim falou Zaratustra”, justamente a que desenvolve o conceito de vontade de poder.

Vontade de poder (ou de potência, segundo alguns tradutores) é a ideia de o ser humano se superar a si mesmo, tornando-se o além-do-homem ou super-homem, uma ponte sobre um abismo, libertando-se de tudo que prega o desprezo por esta vida, como o cristianismo, por exemplo, que nos promete um paraíso fora daqui, se nos privarmos dos prazeres terrenos. Para Nietzsche, portanto, devemos viver com intensidade, imaginando que cada momento pode se repetir infinitamente, no que ele chamou de eterno retorno: “A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!”

Nessa perspectiva é que, muitas vezes, ouvimos de novo as músicas que nos marcaram na adolescência, repetindo a felicidade de um momento que não volta mais, mas que nos trouxe momentos de felicidade. Se não dançamos como antes, nos imaginamos dançando, revivemos momentos de alegria, enquanto no presente a tristeza por causa das mortes devido à pandemia do coronavírus nos derruba, nos tira a vontade de poder e nos torna um aquém-do-homem, olhando para o abismo e sem saber como atravessá-lo.

Cassionei Niches Petry – professor 

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