"Uma ponte sobre o abismo", minha crônica na Gazeta do Sul de hoje
A filosofia influenciou muito o rock (ver Rush, Engenheiros
do Hawaii e Iron Maiden, por exemplo). Mas num estilo de música feito mais para
dançar, pode parecer inusitado. Ou alguém para para refletir sobre a vida
enquanto se diverte numa pista de dança? Confesso que já tive esses momentos
reflexivos quando frequentava boates na minha adolescência, mas era na hora das
“lentas”. Tímido que era, tinha medo de “levar um carão” das gurias, então me
escorava nas caixas de som e devaneava, me perguntando, por exemplo, por que
não estava em casa dormindo. Minha vontade de poder era nenhuma.
Na música pop, inclusive na dance music, se encontra uma ou
outra referência filosófica e literária. No caso de “Will to Power”, no início
do clip do seu maior sucesso, “Baby, I love your way/Freebird”, releitura de
dois clássicos do rock, com letra filosóficas, diga-se, aparece o livro do Nietzsche
que nomeia o grupo, obra organizada pela irmã do filósofo, quando ele já sofria
de um colapso mental. O álbum ainda traz a faixa “Zarathustra”, cuja letra só
fala em dançar, porém o título faz referência a outra obra nietzschiana, “Assim
falou Zaratustra”, justamente a que desenvolve o conceito de vontade de poder.
Vontade de poder (ou de potência, segundo alguns tradutores)
é a ideia de o ser humano se superar a si mesmo, tornando-se o além-do-homem ou
super-homem, uma ponte sobre um abismo, libertando-se de tudo que prega o
desprezo por esta vida, como o cristianismo, por exemplo, que nos promete um
paraíso fora daqui, se nos privarmos dos prazeres terrenos. Para Nietzsche,
portanto, devemos viver com intensidade, imaginando que cada momento pode se
repetir infinitamente, no que ele chamou de eterno retorno: “A eterna ampulheta
da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da
poeira!”
Nessa perspectiva é que, muitas vezes, ouvimos de novo as
músicas que nos marcaram na adolescência, repetindo a felicidade de um momento
que não volta mais, mas que nos trouxe momentos de felicidade. Se não dançamos
como antes, nos imaginamos dançando, revivemos momentos de alegria, enquanto no
presente a tristeza por causa das mortes devido à pandemia do coronavírus nos
derruba, nos tira a vontade de poder e nos torna um aquém-do-homem, olhando
para o abismo e sem saber como atravessá-lo.
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