Literatura, op. 3, de Czekster

 

Literatura, op. 3, de Czekster

 

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O violoncelo, ou simplesmente cello, sempre foi meu instrumento preferido de ouvir e ver. Seu grave, não tanto como o baixo (peço perdão se me equivoco, pois sou um analfabeto musical), me enche os ouvidos e me soa melhor do que o som do violino, em que pese os solos de Paganini me arrebatarem. A estética visual também me atrai, já que é lindo ver o instrumentista tocando, o cello entre as pernas como se abraçasse o corpo da pessoa amada ajoelhada a sua frente.

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O cello também é o instrumento que gosto de ler quando aparece na literatura, embora isso aconteça em raras obras. Há um conto de Machado de Assis, “O machete”, em que o protagonista se apaixona pelo instrumento: “Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos”. Na novela O homem amoroso, de Luiz Antônio de Assis Brasil, o protagonista é cellista da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, como foi o próprio escritor, que voltou a retratar o instrumento no belíssimo romance O inverno e depois, de onde retiro este trecho: “No início do concerto, ele foi atraído pelo solista, que travava uma requintada luta corporal com o violoncelo, capturando-o entre suas pernas rijas, perdendo-o logo para recuperá-lo com gestos que comportavam as interpretações mais libertinas”.

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Essa simbologia erótica do cello, que pode lembrar as curvas do corpo de uma mulher, também é explorada, mas no ponto de vista feminino, no terceiro livro e primeiro romance do premiado contista Gustavo Melo Czekster. A nota amarela (Editora Zouk) descreve os 30 minutos em que Jacqueline du Pré executa o Concerto para violoncelo, op. 85, de Edward Elgar, regido por Daniel Baremboim, marido da musicista, diante das lentes do documentarista Christopher Nupen. O vídeo está disponível na internet. Entrando na mente da artista, o narrador dá voz a ela. Um risco grande do escritor, que soube conduzir, como um competente maestro, as reflexões de uma mulher que é o centro das atenções de um público exigente e que sabe que sua performance será imortalizada pelas câmeras: “Os olhos de todos estão presos a cada gesto meu (...)”.

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Ciente disso, ela busca a perfeição, que ganha cor e nome, a dita “nota amarela, a nota da Criação, um mito da China Imperial”, cuja história ouviu de seu professor. Durante o concerto, ela busca atingir a nota, ao mesmo tempo em que lembra de alguns momentos de sua curta vida e o relacionamento com Baremboim, a quem chama carinhosamente de Danny. Czekster explora muito bem o tempo psicológico que se dilata a partir dos devaneios de Jacqueline du Pré, enquanto o tempo cronológico é preciso, os 30 minutos do concerto que também intitulam os capítulos, contados de forma regressiva.

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No entanto, além da busca da nota perfeita, os pensamentos de Jacque mostram sua relação quase carnal com o instrumento, inclusive diante de várias pessoas: “Tocar cello é excitante: sinto-me estremecer quando ele se esfrega de um lado para o outro entre as minhas coxas abertas, oferecidas, e a sua virilidade solene me deixa encharcada como nenhum homem, nem mesmo Danny, jamais conseguiu (...). Quando estou no palco ninguém desconfia, mas estão me olhando transar ao vivo”. Ou então: “Nunca sonhei em tocar música, o objetivo sempre foi acariciar o meu amante de madeira até fazê-lo gozar de formas que o mundo ainda não tinha visto (...)”. Essa ousadia ficcional do autor, lembrando que a personagem é real, busca atingir o que poderíamos chamar de “a letra vermelha”, que no caso não é a perfeição divina da criação, mas a expressão diabólica do artista literário, que assina, com sangue, um pacto fáustico, buscando retratar o ser humano com suas perfeições e imperfeições.

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Em determinado momento, du Pré diz que o “mundo está repleto de músicas escondidas”. Ouvi música ao folhear as páginas do romance de Gustavo Melo Czekster, assim como, enquanto escrevo estas impressões, ouço a música do aplicativo “qwertick”, que simula os sons de uma máquina de escrever. Só agora vou ouvir de novo Jacqueline du Pré, que não será mais a mesma para mim (melhor, talvez) depois da leitura do romance. Aliás, os bons livros nos fazem isso, não olhar (ou ouvir) mais o mundo e as pessoas da mesma forma.

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Vale uma observação final. O romance é seguido de Sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne, texto que formou, junto com o romance, a tese de doutorado de Czekster. Ainda não li essa segunda parte, para não influenciar as minhas impressões de leitura, por isso não foi comentado aqui. Como sei que Gustavo é também um excelente ensaísta, além de excelente contista, lerei em breve. Deve agradar a quem busca livros sobre escrita criativa.


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