A literatura como protagonista

 


Há certas linhas de um romance que parecem estar ali para ludibriar o leitor, desviá-lo e levá-lo a ter uma interpretação errada da leitura. Enrique Vila-Matas faz isso em uma primeira parte inteira de sua nova narrativa-ensaio (ou ensaio-narrativa), Montevideo, editada pela Seix Barral, da Espanha, com lançamento previsto no Brasil só lá em 2023, pela Companhia das Letras. O fragmento “Paris” é na verdade o primeiro capítulo de um romance que poderia ter sido e que não foi, sobre quem não tem nada para escrever, sobre quem não escreve, sobre quem escreve, mas não conta tudo, sobre quem para de escrever, enfim, os temas metaliterários do autor catalão: uma “biografía de mi estilo”.

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Então o narrador-ensaísta-protagonista abre a segunda parte de Montevideo, “Cascais”, dizendo que ficou três anos sem escrever e que o fragmento “Paris” seria a abertura de um livro descartado. O relato agora o traz para a cidade portuguesa onde acontece um festival de cinema. No hotel, tem seu sono atrapalhado pelas risadas do ator Jean-Pierre Léaud, o Antoine Doinel dos filmes de François Truffaut, ouvidas através das paredes de um quarto contíguo. O caso então nos remete aí sim à cidade de “Montevideo”, que dá título à terceira parte e ao romance. O protagonista se recorda de um conto do argentino Julio Cortázar, “La puerta condenada”, cujo personagem passa por uma situação semelhante em um hotel chamado Cervantes, quando ouve um choro de um bebê atrás de uma porta escondida atrás de um armário de um quarto. O objetivo agora do narrador-ensaísta-protagonista é conhecer o quarto real. Segue-se, portanto, outra viagem, outro destino, outra porta.

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A literatura, porém, tem portas que se cruzam. É o caso, conta-nos o narrador-ensaísta-protagonista, de um conterrâneo de Cortázar, Adolfo Bioy Casares, que escreveu um conto parecido com o do colega e na mesma época. Intitula-se “Un viaje o El mago imortal”. As portas acabam sendo a metáfora para a busca de inspiração, uma passagem, abrir as portas que bloqueiam a escrita. Há, no outro lado, risadas, choros, gemidos de um casal. Vida, enfim.

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Depois de especular sobre uma seita que renderia culto à Cortázar ou o contrário, uma conjuração contra o grande cronópio, o escritor acaba tendo experiências fantásticas, no sentido cortazariano do termo, em que o insólito permeia o real. A literatura de Cortázar é, portanto, o tema deste ensaio-narrativa. Vila-Matas sempre rendendo homenagens a seus pares.

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Sem querer ser cabotino, mas já o sendo, encontrei muitas semelhanças com meu último romance Desvariosentre quatro paredes nos tempos do vírus. Também menciono o conto de Cortázar, paredes, bloqueios criativos, referências intertextuais. Coincidência que se explica, claro, pelas inevitáveis influências.

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Montevideo é leitura necessária. Enrique Vila-Matas é leitura necessária, por nunca deixar de colocar a literatura como protagonista de suas histórias.


(A propósito, o blog hoje fecha as portas.)

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