Sobre "O rei pálido", de David Foster Wallace



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Contra o tédio, o remédio é o próprio tédio

“Tédio, esse é meu drama”, já cantavam os caras do Biquíni Cavadão nos anos 80. É justamente nessa época que se passa boa parte do enredo (se podemos chamar assim) de O rei pálido, publicação póstuma de David Foster Wallace, lançada neste tedioso país pela Companhia das Letras, em tradução de Caetano Galindo. O tédio é o tema do romance que, para os não-iniciados em DFW, pode ser tedioso. Para os fãs do escritor de bandana, é uma considerável dose de entretenimento (leia-se desafio literário que, aborrecendo, não nos aborrece). 

Para se ler este livro de DFW é preciso que o leitor já tenha passado por, pelo menos, dois livros de ficção do autor com tradução aqui no Brasil: Breves entrevistas com homens hediondos, de contos, e Graça infinita, romanção que é sua obra-prima. Entendendo sua proposta, conhecendo seu estilo (que consiste numa mistura de estilos), o leitor será cooptado pela engenhosidade ora lógica ora ilógica de uma escrita vertiginosa, que mistura literatura, filosofia, matemática com referências musicais, cinematográficas e da cultura Pop em geral, como a televisão.  

Que história lemos em O rei pálido? A rigor nenhuma, mas ao mesmo tempo várias. Trata-se de uma porção de fragmentos narrativos, descritivos e ensaísticos (é bom lembrar que a elaboração do romance foi interrompida pelo suicídio do autor) sobre chefes e funcionários de um centro de processamento de impostos da receita federal norte-americana, o Centro Regional de Análise. O protagonista é a própria instituição, o enorme prédio com seus milhares de seres trabalhando em prol do governo, investigando a melhor maneira de tirar mais dinheiro dos americanos. Um grande cortiço laboral, digamos assim. Todo o cenário burocrático, os funcionários em suas baias, os corredores, as portas que se abrem para lugares inusitados e pavimentos enormes do prédio, por sua vez, lembram a literatura de Kafka, citado em alguns momentos. A própria ideia do romance póstumo inacabado, como foi O processo, por exemplo, prova o parentesco e inclusive justifica a publicação da obra. 

Há capítulos sublimes, como o 9, um prefácio do autor, mas que vem depois de quase 80 páginas de romance. Nele, temos um David Foster Wallace autor que se quer o real (“o ser humano vivo que segura o lápis, não alguma persona abstrata”), mas que não verdade não é, falando sobre o processo de publicação da obra e as conversas com o editor que, como ficamos sabendo na nota do verdadeiro editor no início do livro, não aconteceram, e que se coloca também como personagem, afirmando que foi funcionário do CRA. Aliás, o David F. Wallace personagem, que acaba sendo confundido com um David F. Wallace, é um dos tantos que careceram de serem melhor desenvolvidos, não fosse o David Foster Wallace, o autor, ter se enforcado na garagem de sua casa em 2008. 

Em uma das anotações sobre a obra, reunidas pelo editor no final do volume, DFW escreve que a “trama é uma série de preparações para coisas que vão acontecer, sem que aconteça nada de fato”. O leitor se sente como o agrimensor K, de O castelo, ou Joseph K., de O processo, obras kafkianas, embrenhado em uma busca que se sabe inútil, à procura do nada. O rei pálido requer esse leitor niilista, sem expectativas, sem esperança, entediado com a vida e que sabe que vai se entediar com a leitura. Afinal, assim como a ressaca, a solução contra o tédio é se manter entediado. 


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