A massa seduzida pela melodia
“Freud explica” é um lugar-comum para dizer que há coisas
que só podem ser justificadas por atos inconscientes do indivíduo. O que
explicaria, por exemplo, a adesão cega de muitas pessoas a políticos que agem
contra a vida, que cometem crimes, que desviam dinheiro público, que debocham
de quem sofre de doenças como a Covid, que dizem “pintar um clima” com menores
de idade, que não têm empatia alguma? Deitar no divã do psicanalista pode fazer
virem à tona as respostas.
Lembro-me da lenda do flautista de Hamelin, contada pelos
Irmãos Grimm, em que um músico, em troca de um pomposo pagamento, resolveu um
problema da cidade alemã que lhe emprestou o epíteto. Com a melodia de seu
instrumento, hipnotizou os ratos que infestavam o lugar e os levou a se
afogarem no rio Weser. Seus honorários, no entanto, não foram pagos, pois,
alegaram as autoridades, o carrasco não apresentou as cabeças de suas vítimas.
Como vingança, o flautista fez o mesmo com as crianças: encantou-as, enquanto
os pais estavam rezando na igreja, e as trancou em uma caverna. Numa versão
mais trágica, elas também foram afogadas. A moral da história, que a princípio
serve de alerta aos pequenos para não desobedecerem seus pais, propicia também uma
interpretação mais ampla.
Somos propensos a seguir líderes. Talvez isso pertença a
nossos instintos mais primitivos, ou seja, de certa forma esteja arraigado no
nosso inconsciente, levando-se em conta que somos animais, até certo ponto,
como qualquer outro. Temos também o equivalente a uma abelha-rainha na colmeia,
temos um casal alfa que seguimos como os lobos na alcateia, um gorila
dominador, a elefante fêmea mais velha da manada, um peixe mais belo que é
seguido pelos outros no cardume. A diferença é que podemos, de forma racional, questionar
nossos líderes. Podemos, no entanto, não o fazemos. Encantados por sua melodia,
ainda que desafinada e fora do ritmo, somos levados a um fim trágico. E achamos
isso bom. E queremos de novo!
O prêmio Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti, ainda
jovem, no final dos anos 20 do século passado, tinha medo da ascensão do nazi-fascismo,
movimento que vinha sendo apoiado pela população nas ruas de Viena, na Áustria,
onde vivia. Suas reflexões sobre o mal resultaram no ensaio Massa e poder, de 1960, em que nos
mostra como a massa, no sentido de um grupo numeroso de pessoas, pode ser o próprio
poder, manter seus líderes no poder e, o pior, ser depois vítima desse mesmo
poder: “A morte como ameaça é a moeda do poder”.
Se estivessem vivos, Freud, que também escreveu um livro
sobre as massas, e Canetti escreveriam sobre o Brasil um capítulo exemplar.
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