A ceia olímpica



As reproduções da pintura “A última ceia”, de Leonardo da Vinci, são presença marcante nas casas de família há muitas décadas como decoração “kitsch”. De pinturas e entalhes de madeira, passando por diferentes formas de escultura, o afresco do pintor italiano (sim, o original não é um quadro como pensam muitos, mas sim um processo de pintura feito diretamente em uma parede) faz parte do imaginário coletivo. Eu tinha um respeito tremendo pela obra, embora encasquetasse com a disposição dos apóstolos todos de um lado da mesa.

O menino católico deu lugar a um adulto ateu. Por sua vez, a veneração foi substituída por um olhar cético e crítico, mas ainda de admiração pelo trabalho artístico. Vejo hoje na famosa obra possibilidades de leituras antes inimagináveis. O escritor popular Dan Brown contribuiu com isso, a partir de seu romance, “O código Da Vinci”, seguido da adaptação cinematográfica. É impactante, por exemplo, interpretar a figura do apóstolo João, ao lado de Jesus, como Maria Madalena. É polêmico também teorizar, como se lê no romance “A ceia secreta”, de Javier Serra, que o próprio Da Vinci se auto retrata no lugar de um dos discípulos, porém de costas ao Cristo, além de não pintar os convivas com o halo de santidade.

A obra voltou a causar celeuma recentemente devido à abertura das Olimpíadas de Paris. Muitos cristãos e políticos de extrema-direita não gostaram nada, nada de ver a pintura parodiada. “Blasfêmia! Desrespeito!”, gritavam os ofendidos nas redes sociais. “Zombam da religião”, diziam outros, sem saberem, claro, que estavam assistindo à abertura de jogos que têm sua origem no culto aos deuses gregos, considerados pagãos pelo cristianismo, que viviam, segundo a mitologia, no Monte Olimpo, daí, Olimpíadas, sacaram?

Pois justamente esses deuses foram representados, o que ficou claro na figura do deus Dionísio (Baco, para os romanos) pintado de azul à frente da mesa, demonstrando que a referência na verdade era um quadro chamado “Festa dos deuses”, de Jan Harmensz van Bijert, que está exposto, justamente, num museu francês. A figura central da mesa, diga-se, é o deus Apolo.

Não me surpreende mais a visão limitada desse pessoal, que não sabe compreender algo, o que dirá interpretar. Aliás, não devem nem saber a diferença entre esses dois termos. Tudo isso só aumenta minha desesperança em relação à humanidade. Em vez de unir culturas, ideias e religiões para construir um mundo melhor, essa gente quer briga, separação e ganhar no grito para que sua visão de mundo seja a única. Paciência. 

Cassionei Niches Petry – professor e escritor, autor de Desvarios entre quatro paredes, Editora Bestiário.


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