Editora Pinard lança nova edição de "Sobre heróis e tumbas"
“A descida ao eu”
por Cassionei Niches Petry
A frase que intitula esta resenha sintetiza, de forma geral, o romance do século XX, segundo Ernesto Sabato, em O escritor e seus fantasmas. O autor argentino foi um grande físico, chegando a trabalhar no Laboratório Curie, em Paris. Nos anos 40, depois de questionar esse mundo tão racional – que lhe provocava “um vazio de sentido”–, abandonou a ciência para se dedicar à literatura e à pintura. Publicou livros de ensaios e três romances. Um deles, Sobre heróis e tumbas, publicado pela primeira vez em 1961, ganha nova edição no Brasil pela Editora Pinard, que vem se especializando em lançar obras de escritores latino-americanos. A tradução é de Rosa Freire d’Aguiar.
Dividido em quatro partes, inicia com uma nota, supostamente tirada de um jornal de Buenos Aires, pela qual ficamos sabendo que Alejandra matou seu pai, Fernando Vidal Olmos, e depois ateou fogo no próprio quarto, se suicidando. Na primeira parte, “O dragão e a princesa”, passamos a conhecer melhor essa impressionante personagem a partir das percepções de Martín, jovem que se apaixona por ela. Misteriosa, imprevisível e de personalidade forte, Alejandra só não é mais estranha do que os parentes que habitam a casa, gente ligada à antiga aristocracia argentina, cujos antepassados participaram da luta pela independência do país. Esses antepassados podem ser os heróis do título no que seria uma interpretação político-social da obra, colocando Alejandra como metáfora para a própria Argentina. Prefiro, no entanto, a chave mais existencial, sendo que o título dessa primeira parte nos leva a esse sentido. Seria o dragão Martín e a princesa seria Alejandra? Ou seria a jovem uma princesa-dragão, soltando fogo através de suas duras palavras?
Na segunda parte, “Os rostos invisíveis”, a história se desenvolve com mais comentários sobre a história da Argentina, inclusive sobre a era peronista, as paixões anteriores de Alejandra e aparece pela primeira vez Fernando Vidal Olmos, esse o rosto invisível em boa parte do enredo, mas que começa a se revelar. É dele o manuscrito que seria encontrado posteriormente no quarto incendiado e que corresponde à terceira parte, talvez a mais perturbadora de todo o enredo: “Informe sobre cegos”.
O texto é uma narrativa enigmática, que reflete a mente perturbada de Fernando em sua tentativa de encontrar a Seita dos Cegos. Percorre, inclusive, os esgotos subterrâneos de Buenos Aires, como a descida de Ulisses ao Reino de Hades em busca das respostas do cego Tirésias, contada na Odisseia, de Homero. Paradoxalmente, busca a luz nas trevas. Na verdade, a busca representa a jornada nas tumbas da nossa mente, por isso as menções ao sexo desenfreado, aos canalhas de todas as estirpes, ao lixo produzido pelo homem. Tudo alegorias das questões morais do ser humano. Mais do que isso eu não falo sobre o “Informe”. Leia-o. Repito, leia-o. E mais uma vez: leia-o, mesmo que seja só essa parte. Vai te deixar perturbado durante dias, mas é esse o objetivo de todas as grandes obras literárias.
O romance se encerra com “Um Deus desconhecido”, que retrata os acontecimentos depois da tragédia relatada na nota policial do início. Também ficamos sabendo mais sobre a vida de Fernando Vidal Olmos. Vidas particulares e pátria se mesclam a partir de justaposições de imagens do passado e do presente, tanto dos personagens como da própria Argentina.
Tudo se conclui e nada se conclui. O Absoluto continua desconhecido, as trevas continuam trevas, os rostos continuam invisíveis e não descobrimos se a princesa é mesmo o dragão. A única certeza é de que o leitor terminará a leitura com a mesma sensação que teve Martín depois de ver Alejandra pela primeira vez: “já não era a mesma pessoa de antes. E nunca mais voltaria a sê-lo.”
(Uma outra versão desta resenha, de 2010, será publicada no meu próximo livro, Uma biblioteca na cabeça, a ser lançado, provavelmente, ainda neste mês.)



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