Reedição de "Os homens dos pés redondos", de Antônio Torres



 O retorno dos homens de pés redondos

por Cassionei  Niches Petry

Se o primeiro romance trazia como título Um cão uivando para a lua, no segundo, o escritor nos faz olhar para baixo, para Os homens de pés redondos. Antônio Torres publicou o livro em 1973, em plena ditadura militar. Talvez por isso a história se passe num quase fictício país chamado Ibéria. Quase fictício porque tudo nos leva a crer que se trata de Portugal, devido a algumas expressões usadas pelos personagens, como “gajo”. Por outro lado, há mais expressões do nosso próprio país e, por isso, pode-se dizer que o lugar é uma alegoria do Brasil, afinal só aqui poderia acontecer essa cena: “Júnior se encaminhou para o grupo dos mendigos. Entrou cantando junto com eles, que não se incomodaram com o novo folião. — A chuva cai, eu acho graça. Guarda chuva de pobre é cachaça”. Vivíamos sob o jugo das botas de solas arredondadas, o que nos remete à célebre frase de George Orwell, no romance 1984: “Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando em um rosto humano ‒ para sempre".

Um personagem que percorre boa parte da narrativa, embora não se possa dizer que seja o protagonista, é chamado apenas pelo sobrenome: De Jesus. Ele carrega uma tesoura no bolso, com intuito de matar seu chefe, Adelino Alves, publicitário, mas apresentado também como escritor. Este é preso por suposta subversão e em seu lugar assume um sujeito denominado apenas como o Estrangeiro, que também toma seu lugar na cama, ao relacionar-se com Lena. 

Outras personagens vão surgindo, numa narrativa caleidoscópica, com mudanças de focos narrativos e uso de diversos gêneros textuais, como a carta. É um livro de difícil leitura. O leitor precisa estar disposto ao desafio de encaixar as peças, se embrenhar na densa floresta e interpretar os não-ditos. Por isso a censura deixou escapar uma obra que a descrevia. As botas não pisaram suas páginas.

Os fatos que se sucedem vertiginosamente sugerem o absurdo de se viver sob um regime opressor. O Estrangeiro lembra, a certa altura, um conselho de Alves: “Cuidado com o que você fala. Você está vivendo num país sitiado”. O governante, chamado de El-Rey, é descrito de uma forma caricaturizada. Das poucas vezes em que aparece em público, na visita do Papa, surge “só da cintura para cima, não apenas para mostrar o timbre exato da sua voz, ou a cor esmaecida de seu rosto comprido e magro, um rosto de quem passou 84 anos enclausurado num mosteiro, sem nunca ter visto a luz do sol.”

Embora minha interpretação do título leve em conta as botas de militares, em entrevista, o próprio Antônio Torres dá outra explicação: quando estava num café, em Lisboa, “passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés redondos”. É uma metáfora que sugere o quanto andamos, andamos e repetimos as mesmas coisas. Mesmo passando por momentos de cerceamento de liberdade, quando nos livramos disso, passam-se os tempos e a ameaça retorna. Rodamos e voltamos ao mesmo ponto. Qualquer semelhança com a tentativa de golpe que sofremos, não é mera coincidência. O retorno dessa obra literária às livrarias, pelas mãos da Editora Record, pode nos servir de alerta: ou ficamos de pé ou seremos pisados.


(Leia também a resenha sobre Essa terra: https://cassionei.blogspot.com/2017/04/essa-terra-nao-tem-dono.html)

Comentários

Altamir Tojal disse…
Comentário preciso, à altura da obra, do autor e do momento. Bela iniciativa a reedição de Os homens dos pés redondos.
Cassionei Petry disse…
Obrigado pela leitura.

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