Sobre Necrológio, de Victor Giudice



 Necronarrativas

por Cassionei Niches Petry

A primeira e única edição de Necrológio, primeiro livro de contos de Victor Giudice (1934-1997), estava custando muito caro na internet, pois há poucos volumes à disposição. Volta e meia dava uma atualizada na pesquisa via Estante Virtual, quando então surgiu um exemplar bem mais em conta. Não pensei duas vezes e pus logo no “carrinho”.

O interesse pelo livro se deu, num primeiro momento, porque queria conhecer outros textos do autor de “O arquivo”, obra-prima do conto brasileiro. Ao tê-lo em mãos, verifiquei que essa edição é realmente algo único, tendo em vista o projeto gráfico: esse mesmo relato, por exemplo, inicia na capa e continua nas páginas seguintes, antes de iniciar propriamente o livro, diagramado em forma de coluna, lembrando a verticalidade de um arquivo de escritório, no qual o protagonista se metamorfoseia (seria o arquivo, na verdade, um túmulo?). Inventividade e originalidade que passam ainda pelo enredo que eu já conhecia de muitas releituras, bem como o uso do nome “joão”, iniciado com letra minúscula, conotando a redução (palavra que aparece em destaque na capa) do indivíduo, tema que perpassa toda a obra.

O título do livro não pertence a nenhuma das narrativas, de onde se conclui que o escritor sugere a morte como motivo principal dos contos (um deles, inclusive, se chama “Falecimento, morte & vida de F.”), já que, segundo o dicionário, necrológio é uma notícia ou elogio fúnebre, obituário. “A morte sempre é pavorosa quando não estamos preparados”, diz uma personagem de “Os pontos de Harmonisópolis”. Pode ser a morte social, como em “O arquivo”; o assassinato, em “Sinephryza”; o suicídio, em “Curriculum mortis”; ou a morte da narrativa tradicional, conforme se nota em todos os textos.

Os relatos são tão experimentais no que diz respeito à linguagem que se tornam praticamente ilegíveis. “A válvula”, de tom kafkiano, em que o protagonista se transforma em um inseto, foi muito difícil de ler, devido à justaposição de palavras e à fragmentação exagerada.“Oz queijos”, por sua vez, intercala as vozes de várias personagens, oriundos da alta sociedade carioca, com a do narrador. Quando eles dialogam, a pronúncia lembra a de um fanho, mas na verdade representa a afetação de quem diz algo com certa arrogância: 

“— Gláááro, glááro, glaro. A regonsdiduizão da epiderme brozeza-se gom ezdraordi 

Zim, zou eu mezma. 

nária rabidez, uma vez que o dezido zelular re 

Gomo? 

zebe uma zérie de ezdímulos 

O zenhor boderia

 —  broveniendes de um 

— rebedir?” 

A falta de legibilidade na linguagem talvez tenha um propósito, se levarmos em conta que os contos foram escritos durante a ditadura militar, sendo uma forma de driblar a censura, assim como o elemento fantástico traz o que se denomina “literatura de fresta”, ou seja, nas entrelinhas, no que aparece escondido, pode-se perceber a crítica ao período em que o país vivia e também uma reflexão sobre a “catatonia integral” do povo brasileiro, para usar de uma expressão de Gonzaguinha, que intitula uma de suas canções da mesma época sombria.

Para finalizar, uma boa notícia: a Kotter Editorial começa um projeto de reeditar as obras de Victor Giudice. A primeira publicação é Contos reunidos I: O arquivo e outras histórias, reunindo as narrativas de Necrológio e Os banheiros, seu segundo livro, lançado originalmente em 1979, considerado mais acessível do que seu predecessor. Esperamos que o projeto não seja arquivado.


Comentários

Eneida Santos disse…
Acaba de ser reeditado! Necrológio e Os banheiros integram o
volume I de Contos Reunidos de Victor Giudice, publicado pela Kotter Editorial.
Cassionei Petry disse…
Como eu informei no final da resenha.

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